segunda-feira, 22 de junho de 2020

Análise: Uma Aventura de Blake e Mortimer - O Último Faraó



Uma Aventura de Blake e Mortimer - O Último Faraó, de Jaco Van Dormael, Thomas Gunzig, François Schuiten e Laurent Durieux

Se a publicação de um novo livro de Blake e Mortimer é sempre um motivo de euforia para os muitos fãs que esta série de banda desenhada tem, é de notar que este O Último Faraó, sendo uma obra de grande qualidade e uma homenagem ímpar às personagens de Edgar P. Jacobs, também revisita novos universos, traçando – para o bem e para o mal – um caminho que se afasta sobejamente dos livros desta série clássica.

De facto, esta obra parece transportar-nos mais para o universo de As Cidades Obscuras, de Schuiten e Peeters, do que, propriamente, para um livro clássico de Blake e Mortimer. E não que haja algum mal nisso. Porém, aviso os fãs de Blake e Mortimer que pode haver uma possível desilusão, se aquilo que procuram é mais uma aventura da famosa dupla. Já se, por acaso, existirem leitores que sejam fãs do universo ilustrativo de Schuiten e da série Blake e Mortimer, ao mesmo tempo – e certamente, haverão muitos! -, então este álbum reveste-se da maior obrigatoriedade possível. 

A história leva-nos a uma aventura, que vai buscar um fio condutor a O Mistério da Grande Pirâmide, uma das histórias mais célebres da dupla Blake e Mortimer. Neste O Último Faraó, o protagonisto é quase na totalidade de Mortimer, relegando Blake para funções mais secundárias na narrativa. Destaco que uma coisa que me fez alguma confusão foi o facto de Blake estar muito mais envelhecido do que Mortimer. Mortimer está mais velho, sim, mas Blake parece uma personagem verdadeiramente idosa, em comparação com Mortimer. 

A narrativa decorre numa Bruxelas destruída e abandonada, após a libertação de uma energia de origem desconhecida, cuja radiação coloca em risco toda a humanidade. Mortimer é pois, a pessoa que encabeça o empreendimento de enfrentar esta ameaça, com toda a sua inteligência e pensamento crítico. Para tal, tem que ir até ao ponto central de onde esta energia é emanada: o Palácio da Justiça – aquele que será, por ventura, o edifício mais notável e emblemático, não só da cidade de Bruxelas, como de toda a Bélgica. Este edifício, diga-se, tem uma importância tão grande na obra que é quase como se fosse uma personagem per si.

O ritmo da narrativa é algo lento – e mais uma vez, isto remete-nos para As Cidades Obscuras – com a personagem central a embarcar numa viagem pelo sobrenatural e pela ficção científica, assente numa realidade paralela que é propiciada, essencialmente, pelos sonhos de Mortimer, que martirizam a personagem e a levam a locais e encontros oníricos. Mas, à medida que a história vai avançando, há momentos de maior tensão e o ritmo narrativo avança significativamente, também.

Uma das coisas que mais gostei neste livro foram as questões que esta história tem a capacidade de levantar, nas mentes dos leitores. Quão dependentes estamos de uma sociedade que funciona a mil à hora, sem quaisquer oportunidades de abrandamento? Consegue o mundo respirar da forma como é explorado pela humanidade? Consegue a própria humanidade respirar? E se algo pára? Que capacidades temos para reagir? Como o faremos numa situação in extremis? Especialmente na época que (ainda) estamos a viver, causada pela pandemia de covid-19, que fez o mundo parar durantes uns meses e trouxe à baila uma reflexão mais profunda sobre a forma como estamos a viver, a leitura deste livro reveste-se, ainda mais, de significados secundários que serão, a meu ver, tão ou mais pertinentes do que a história mais linear que nos é dada nesta obra. 

Os livros de Schuiten sempre foram mais para pensar e para racionalizar, do que, propriamente para passarem emoções ao leitor. E, também aqui, isso acontece. Mesmo podendo ser uma história algo fria, do ponto de vista emocional, é uma história bem construída e que nos leva a pensar. Mais do que dizer: “este livro sensibilizou-me”, aquilo que acabamos por dizer quando acabamos a sua leitura é: “este livro fez-me pensar um pouco”. Para isso contribuiu a participação de vários nomes na elaboração da obra. Schuiten não esteve sozinho e foi ajudado no argumento por Jaco Van Dormael e Thomas Gunzig.

As ilustrações de Schuiten são absolutamente incríveis, especialmente em termos de ambientes e de arquitetura. Aliás, por vezes, Schuiten até me parece mais um arquitecto (e/ou um engenheiro) do que, propriamente, um ilustrador de banda desenhada. As suas ilustrações de ambientes atingem uma capacidade de detalhe singular, que são um mimo para os olhares atentos. Não obstante, e mesmo sabendo que esta afirmação poderá ser polémica para grande parte dos leitores que me lêem, não fico tão maravilhado com as ilustrações das personagens que este autor faz. Mesmo reconhecendo que o seu estilo é muito próprio – e isso merece, desde logo, as devidas vénias – a verdade é que nos seus livros todos, as personagens parecem-me sempre algo frias e pouco expressivas, o que faz com que se pareçam mais com bonecos de cera do que com figuras humanizadas. É o seu estilo, bem sei. No entanto, tratando-se de um livro de Blake e Mortimer, bem mais baseado nas personagens do que nas construções ou ambientes, penso que é uma coisa menos bem conseguida nesta obra. Apenas porque, repito, não considero que o nível de excelência de Schuitten na caracterização das expressões emotivas das personagens, seja tão bom como o é nos cenários e objetos. E, em Blake e Mortimer, talvez se pedisse mais no departamento das expressões das personagens.

Onde o livro é muito forte também, é nas cores, que são asseguradas por Durieux. Se há algo que, à semelhança do traço de Schuiten, eleva este livro a um objeto de arte é, sem dúvida, a componente cromática que habita nestas páginas. O ambiente é muito próprio, com cores que são exatamente aquilo que a história pedia. Mas mais do que isso, as cores conseguem realçar da melhor forma o traço de Schuiten. E isso é sempre digno de menção. Destaque para a capa do álbum, que é espetacular em termos de concepção, ilustração e de aplicação de cores.

Relativamente à edição por parte da editora ASA, devo dizer que está impecável. O papel é bom, a qualidade da impressão também e o design do livro é fiel ao livro original, em francês. É, também, um objeto bonito para se ter numa boa coleção de banda desenhada.

Em conclusão, e dito de uma forma muito linear, este é um livro que se for visto como "um livro que presta homenagem a Blake e Mortimer", é uma obra estupenda da banda desenhada. No entanto, se for visto como “mais um livro de Blake e Mortimer” ou como "uma continuação da série", terá um sabor agridoce para muitos fãs, não obstante a sua qualidade.

Uma coisa é certa: pode não ser perfeito mas a qualidade está lá, com uma história pertinente para os dias de hoje e com uma arte ilustrativa singular, carregada de virtuosismo técnico. 


NOTA FINAL (1/10):
8.5

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

-/-

Ficha técnica
Uma Aventura de Blake e Mortimer - O Último Faraó
Autores: Jaco Van Dormael, Thomas Gunzig, François Schuiten e Laurent Durieux
Editora: Asa
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura

Sem comentários:

Enviar um comentário