Dragomante era um livro que já tinha despertado o meu interesse há bastante tempo mas que só agora tive a oportunidade de ler. E é fácil perceber o porquê do meu interesse primário: a arte de Manuel Morgado que, facilmente, chamou a minha atenção é um excelente cartão de visita. De facto, este parece ser um livro produzido fora de Portugal, tais não não são as suas características inerentes de boa arte ilustrativa, ótima paleta de cores e excelente grafismo. Mas já lá irei.
A ação de Dragomante decorre num tempo medieval, onde há espaço para cavaleiros e dragões, à boa maneira de uma história do universo fantástico. Bem ao jeito de uma Guerra dos Tronos, diria.
Mas o que são dragomantes? Bem, são guerreiros que têm como especialidade máxima, a arte de conseguirem domar dragões, estabelecendo uma relação muito especial com os mesmos, ou não batessem os seus corações – os dos dragomantes e os dos dragões, entenda-se – de forma ritmada, em uníssono. Logicamente, os dragomantes ao conseguirem ter estes animais sob sua alçada, são indivíduos poderosíssimos. E, para que este poder não lhes suba à cabeça, é-lhes designado um escudeiro que tem como principal objetivo trazer o seu dragomante à sobriedade e ao bom senso. Estão a imaginar como este poder de domar dragões se, colocado nas mãos erradas, poderia ser nefasto para a sociedade?
A história desenrola-se no reino de Armitaunin e tem em Nereila, uma jovem dragomante, a sua protagonista. Esta é acompanhada por Ékión, o seu escudeiro, que deverá zelar para que a jovem não se deixe consumir pelo próprio fogo que, juntamente com o seu dragão, consegue dominar. E claro, existe um antagonista, de seu nome Gárgol, que fora derrotado em tempos pelo pai de Nereila, Edégeon, e que agora procura fazer valer a sua vingança na jovem dragomante.
Estes são os condimentos lançados pelos autores para esta história ambientada num universo do fantástico. E é uma obra rara na sua conceção: ao contrário do mais habitual em banda desenhada, em que é traçado um argumento e só depois, com base no mesmo, nascem as ilustrações, em Dragomante o processo foi inverso. Aqui, Manuel Morgado até já tinha as ilustrações para a obra mas faltava-lhe o argumento que pudesse sustentar essas mesmas ilustrações. E decidiu chamar Filipe Faria que é um autor já bastante experiente no reino da fantasia com os seus romances As Crónicas de Allaryia.
Filipe Faria faz um trabalho interessante em Dragomante, conseguindo imaginar e transportar-nos para uma sociedade medieval onde os dragões – e os dragomantes – têm um papel fundamental na mesma. Mas houve um problema que substiu na minha leitura da obra e que assenta na necessidade - demasiado presente - do autor em justificar os eventos e de contextualizar este universo. O que são dragomantes e o que é esperado deles. E dos escudeiros. E do perceptor. É verdade que, ao início, achei extremamente pertinente que existisse esse texto de apoio para ambientar o leitor nesta realidade e tornar fácil a imersão do mesmo na história. Mas depois, pareceu-me que Filipe Faria abusou deste tipo de discurso, tornando a leitura em algo redundante e que, por vezes, até se torna cansativa. Muita coisa é dita sem que a ilustração acompanhe o que está a ser dito. Um exemplo disto é o final do livro em que há uma aproximação entre Nereila e Ékión que anteriormente mal se toleravam. Mas esta aproximação é parcamente explorada. Aparece quase só porque sim. Parece haver uma certa urgência em contar a história, o que leva Filipe Faria, compreensivelmente, a mantê-la à superfície. Por outras palavras, Filipe Faria é eficaz a fabricar a história mas não vai ao âmago do que a mesma poderia ser.
Por esse motivo, e mesmo admitindo que a tarefa de construir uma história em cima de uma arte visual já desenvolvida e planeada possa não ser nada fácil, achei que o argumento e respetiva narrativa acabam por ser algo superficiais. O autor até se esforça bastante para justificar e contextualizar a história mas, por vezes, pareceu-me que se perdeu nessa mesma contextualização, em detrimento de uma narrativa mais dinâmica. E os diálogos, em concreto, surgem algo insípidos e um bocado forçados, em vários casos.
Mas dizer isto não é o mesmo que dizer que a história não é interessante. Porque o é e faz-nos querer desvendar o que vai acontecer a seguir. E isso, também merece o seu crédito, logicamente. Quando o livro termina, ficamos com a sensação de que soube a pouco – o que até é algo manifestamente positivo, admita-se. Este Dragomante: Fogo de Dragão acaba, por isso, por parecer como que uma introdução ao universo de uma saga que se adivinha longa. Ou mesmo que não o seja – calculo que o sucesso (ou insucesso) comercial da série possa ter uma palavra a dizer sobre essa longevidade – acho que há, pelo menos, um forte potencial para fazer de Dragomante uma série com vários volumes e histórias. Nesse sentido, informo que o editor d' A Seita, José Freitas, já me confirmou que os autores se encontram neste momento a trabalhar no segundo volume da série que deverá chegar-nos em 2022.
Mas falta realçar aquilo que chamou verdadeiramente a minha atenção: a arte visual de Manuel Morgado. Este autor português, que trabalha para o mercado franco-belga, oferece-nos neste Dragomante uma arte ilustrativa moderna, estilizada e que é muito agradável ao olho. O desenho das personagens é bem conseguido, tal como são as poses - quase sempre dramáticas - dessas mesmas personagens ao longo da narrativa. O desenho dos dragões também impressiona. A somar a isto tudo, ainda temos a introdução de uma generosa paleta de cores que funciona muito bem na obra, permitindo que a mesma adquira um aspeto moderno e atual. O desenho das lutas de espada também é interessante embora, neste cômputo, o trabalho do autor não seja fora de série, a meu ver. Mas cumpre bem.
A planificação também tenta ser dinâmica, apresentando algumas soluções diferentes para contar a história, tais como a presença de diferentes tamanhos de vinhetas, a utilização das duas páginas para ilustrar grandiosas batalhas entre dragões ou para alterar o sentido da leitura.
O resultado, do ponto de vista da ilustração, acaba por ser muito interessante e oferece à obra a ideia (ou já será isto um complexo do mercado de bd nacional?) de que esta parece não ter sido feita por portugueses. Parece algo importado. E isso só reveste Dragomante de uma aura profissional que merece as minhas vénias e respeito. Tendo algumas lacunas em termos de argumento, parece-me uma banda desenhada que se sabe apoiar bem na sua arte - bem conseguida - e embrulhar tudo num produto bastante apetecível. Para os que gostam do género do fantástico. Para os que gostam da subtemática dos dragões. E para os que gostam de uma bd com desenhos de paisagens deslumbrantes e criaturas gigantes e temíveis. Parece, pois, ser uma obra com a capacidade de agradar a um vasto número de pesssoas.
A edição do livro, que ficou a cargo das editoras Comic Heart e G.Floy é impecável, apresentando capa dura, com papel de boa qualidade e boa impressão. Há ainda um dossier de extras que, embora curto, acrescenta valor à obra. Faço ainda um breve destaque ao bom tratamento de design que foi dado a Dragomante. Não me canso de dizer que isso também é importante e também contribui para uma boa experiência de leitura e de colecionismo.
Em suma, Dragomante é uma obra muito interessante e que pode até afirmar-se como porta-estandarte da banda desenhada de fantasia povoada por cavaleiros e dragões made in Portugal. Para aqueles que já gostam deste género de fantasia ou que são apaixonados pelas temáticas de obras como Guerra dos Tronos, The Witcher, Eragon, e afins... este Dragomante merece recomendação obrigatória. Não é uma obra isenta de falhas mas parece-me um projeto com capacidade de ser um sucesso à escala portuguesa e, quem sabe, ir buscar um outro tipo de público que até não lê muita bd. Tem tudo ao seu alcance para continuar durante vários volumes e tornar-se numa referência em Portugal. Vale a pena conhecer.
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Dragomante: Fogo de Dragão
Autores: Filipe Faria e Manuel Morgado
Editoras: G. Floy e Comic Heart
Páginas: 52, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Março de 2018
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