El Ángelus é uma obra da autoria de Frank Giroud (O Decálogo) e de José Homs (Shi) que foi originalmente publicada no ano de 2010 e 2011, em dois tomos, com o título Secrets – L'Angélus. A versão que li e na qual baseio a minha análise é a versão integral (e ampliada) espanhola, publicada pela Norma Editorial, com o título El Ángelus. Agradeço ao meu amigo Mário Freitas, da Kingpin, pelo incentivo nesta leitura. E que fantástica leitura é! Arte e argumento trabalham em simbiose para nos oferecer uma maravilhosa e marcante banda desenhada. Que merece receber publicação em português. Sendo um álbum em dois tomos, acho que faria sentido a publicação num integral. Algo parecido com o que, em Portugal, a Arte de Autor tem vindo a fazer nas suas coleções.
A história do livro assenta na caminhada pessoal da personagem de Clóvis Chaumel. Clóvis tinha uma vida aparentemente pacata. Casado e com dois filhos, levava a vida que tantos milhões de pessoas por esse mundo fora levam. Rotineira, normal, expectável. Era uma vida calma e serena. Porém, e de forma bastante súbita, a sua vida sofre um abalo que o vai fazer ver toda a sua existência com outros olhos. E mudá-lo profundamente, fazendo com que não mais seja a mesma pessoa. E tudo isso é iniciado quando no Musée d'Orsay, em Paris, Clóvis dá de caras com o quadro L'Angelus da autoria do pintor francês Jean-François Millet. A visão deste quadro perturba profundamente o protagonista que decide investigar mais acerca da obra de Millet.
E é quando se apercebe que também Salvador Dali tinha uma profunda obssessão pelo mesmo quadro de Millet, tendo feito variadíssimas interpretações do mesmo em seus conhecidos trabalhos, que Clóvis começa uma investigação ainda mais profunda sobre o que há por detrás do quadro de Millet e as suas implicações em Salvador Dali. E é depois dessa demanda que leva a cabo, que o protagonista consegue conhecer mais sobre o quadro e, consequentemente, conhecer-se a si próprio, embarcando numa viagem emocional ao centro de si mesmo: às suas memórias reprimidas, a segredos bem guardados, a um passado que parecia normal mas que tinha muitas sombras e verdades escondidas. Como se Clóvis não vivesse num repentino turbilhão ainda conhece Evelyne, a bonita professora de artes visuais do filho, que o ajudará na sua pesquisa inicial. Será ainda confrontado por todos os que o rodeiam, que não parecem estar a compreender esta nova pessoa em que Clóvis se transforma. Mas isso não o impedirá de continuar o seu próprio caminho. Custe o que custar.
Como é um livro que tem bastantes plot twists, ficar-me-ei por aqui, para não estragar o prazer de leitura aos que seguem o Vinheta 2020. De qualquer maneira, posso dizer que, relativamente ao argumento, aquilo que mais me agradou nesta obra fantástica foi a forma como a narrativa nos leva por uma viagem bastante profunda quando, à primeira vista, parecia “apenas” um argumento que incidiria sobre a procura de significados ocultos numa obra de arte. Isso já seria suficientemente interessante, na verdade. Mas parece-me que o grande trunfo, do ponto de vista do trabalho do argumentista Giroud, é pois a viagem, por si só, que o autor nos obriga a fazer sem que possamos prevê-la no início do livro.
À medida que vamos avançando na história vamos sendo surpreendidos várias vezes. Nuns casos parece que a história vai por um caminho e, depois, vai por outro. E noutros casos, a história até acaba por nos dar algo que nem sequer tínhamos presente como alternativa possível. E claro, no fundo, quer o quadro original de Millet que despoleta toda esta procura, quer o próprio trabalho de Dali em relação à obra original, acabam por ser meros pretextos para a real e verdadeira demanda do protagonista da história. Assim sendo, o que desencandeia esta viagem ao fundo de si mesmo é um quadro mas poderia ser uma canção, um filme, um livro, qualquer coisa.
Mas, claro, como há significados ocultos na obra de Millet, o argumentista serve-se bem disso para, especialmente no primeiro tomo, andar a brincar um pouco com o leitor numa espécie de jogo de rato e gato. E, verdade seja dita, parece-me que o primeiro tomo deste álbum aponta para vários caminhos deixando, por vezes, a trama algo desprendida em si mesma. No entanto, é no segundo tomo que a história se torna mais profunda e começamos a mergulhar verdadeiramente no passado de Chaumel e no seu novo eu, que parece virar costas à sua vida antiga, e que começa a procurar novos caminhos e interesses para a sua existência.
Talvez eu tivesse gostado de um final mais fechado do que aquele que nos é dado mas não posso deixar de afirmar que a jornada da personagem é magnificamente bem construída pelo autor.
Mas se o argumento é emocionante e muito bem construído, o que dizer da arte do espanhol José Homs? A arte é verdadeiramente soberba e original em todos os vetores possíveis! O desenho tem uma personalidade muito própria, sendo os cenários bastante realistas e as personagens semi-realistas, que apresentam uma beleza na concepção à qual é difícil ficar indiferente. O protagonista desta bd não muda apenas em termos de maneira de ser, ao longo do livro. Também vai mudando em termos de roupas e de aspeto. E acho que essa conceção da personagem também está muito bem conseguida por parte de Homs. E a professora de artes visuais, Evelyne, tem igualmente uma conceção fantástica, com o seu aspeto original e apelativo, que fica na nossa memória já depois de terminarmos a leitura da obra. Quer na composição das vinhetas, nas perspectivas e ângulos utilizados, na profundidade das ilustrações, o detalhe das personagens e dos objetos, e a expressividade artística que irradia das páginas de El Ángelus, tudo é feito ao mais alto nível por parte do autor.
Em termos de luz e cor, esta também é uma verdadeira obra de arte. A paleta de cores que o autor utiliza embeleza cada cena, cada momento, cada gesto das personagens. E sabe também ser variada. Se é verdade que os tons amarelados são dos mais constantes ao longo do álbum, também é verdade que, a espaços, são utilizadas outras paletas de cores que encaixam que nem uma luva para sublinhar e reter a força dramática de uma cena.
Quanto à planificação até é verdade que esta é bastante clássica. Ainda assim, há alguns momentos sublimes em que o autor nos surpreende por arriscar mais. Em termos de dimensão de vinhetas, também há bastante diversidade, o que permite a utilização de planos de câmara mais cinematográficos, que enfatizam os sentimentos que, indubitavelmente, passam para o leitor. Na verdade, acho que se esta obra fosse adaptada ao cinema daria um excelente filme.
Olhando para a edição da Norma Editorial, há que reconhecer que estamos perante uma edição fantástica: capa dura e papel de boa qualidade e um dossier de extras espetacular, que nos mostra o making of da obra, com comentários do ilustrador Homs, que nos convida a conhecer como foi o processo da capa, os esboços das personagens, as capas das versões francesas, as técnicas utilizadas – quer no primeiro, quer no segundo tomo – e, no final, ainda temos como extra uma ilustração em anexo (vem dentro de um invólucro de plástico que é colado à parte de dentro da contracapa do livro). Um álbum duplo com inúmeros extras e ainda esta ilustração e com um preço de cerca de 25€, parece-me uma proposta irrecusável!
Em conclusão, El Ángelus é uma obra maravilhosa que nos serve tudo com um elevado grau de qualidade e profissionalismo: uma história comovente, profunda e surpreendente; uma arte visual verdadeiramente impressionante e soberba; e uma edição da Norma Editorial muito bem conseguida que gostaria de ver publicada por alguma das editoras portuguesas. Altamente recomendado e um dos melhores livros que lerei em 2021, estou certo.
NOTA FINAL (1/10):
9.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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El Ángelus, Nueva Edición Ampliada
Autores: Frank Giroud e José Homs
Editora: Norma Editorial
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Dezembro de 2020
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