A família mais disfuncional de sempre da banda desenhada está de volta! E é um regresso em grande! Ao nível daquilo a que os felizardos leitores do Volume 1 já puderam experenciar.
Se há papel importante que as editoras de banda desenhada (também) fazem, é o de curadoria em relação ao lançamento de obras menos badaladas. Isso permite que os leitores possam descobrir – ou redescobrir – boas séries de banda desenhada. Quando no ano passado a Arte de Autor, oportuna, foi buscar este Spaghetti Bros, apanhou muita gente desprevenida. Os que já conheciam, rejubilaram com o lançamento desta fantástica série em Portugal. Os que não conheciam, tiveram, certamente, uma das melhores surpresas do ano editorial do ano passado.
Portanto, é uma alegria ver que Spaghetti Bros, composto por 4 volumes, já tem metade da sua série publicada em Portugal.
Spaghetti Bros é, de uma forma avassaladora, politicamente incorreto, subvertendo as regras do certo e do errado, sem escrúpulos e sem qualquer contenção. Numa altura em que, de forma geral, o entretenimento me entristece cada vez mais, ao ter posturas falsamente moralistas e (apenas e só) corretas aos olhos da opinião pública – recordo a série Os Simpsons, da qual sempre fui fã, que recentemente decidiu substituir o ator, que sempre fez o papel da personagem Apu, por um ator indiano (só para não ferir suscetibilidades) e que colocou um ator homossexual a dar voz a uma personagem homossexual (mais uma vez, com o único propósito de não ferir suscetibilidades) – é bom olhar para a banda desenhada e verificar que é uma forma de arte (ainda) bastante livre, havendo espaço para todo e qualquer estilo de histórias. Muitas vezes, politicamente incorretas nos valores que contêm. Mas, lá está, isso é, a meu ver, uma coisa boa porque a criação artística não deve ser sintética e falsamente moralista (nem sequer tem que ser moralista, sinceramente). A criação artística deve ser uma expressão, uma ideia, um output criativo. Acredito que se houvesse uma adaptação de Spaghetti Bros para uma série da Netflix, haveria um autêntico reboliço e, possivelmente, petições públicas e manifestações para que os responsáveis da série e, em última análise, os criadores originais Trillo e Mandrafina, fossem veemente criticados e marginalizados (e quão irónico é marginalizar os que, supostamente, marginalizam, não?).
E porque é que falo sobre estes temas? Bem, como já referi acima, Spaghetti Bros é verdadeiramente incorreto. Entre aquilo que esta fantástica série nos oferece nas suas histórias, temos violentos criminosos, temos adultério, temos machismo, temos violações, temos padres criminosos, homens criminosos, mulheres criminosas, uma atriz que subiu na carreira cinematográfica após favores de foro sexual. Temos tudo aquilo que é tido como errado. Mas, ainda assim, Spaghetti Bros não poderia ser uma série mais deliciosa! E ponham nas vossas cabeças a ideia de que abordar estes temas não quer dizer promovê-los. Pode até querer dizer que são errados. Chamar a atenção para tal. Embora também não me pareça que seja esse o caso nesta série.
Portanto, serei eu ou os muitos amantes de Spaghetti Bros uns autênticos párias e vermes da sociedade? Ou esta série é apenas - e só - um conjunto de histórias divertidas, empolgantes, com personagens inesquecíveis e que serve, em primeiríssimo lugar, para entreter? Eu julgo que se trata desta segunda hipótese! E, acreditem, é uma série quenos deixa entretidos de forma deliciosa.
O fantástico conjunto de 5 irmãos, emigrantes italianos, que constituem a família Centobucchi, e que procuram sobreviver das mais diversas formas nos Estados Unidos da América, inclui um gangster, Amerigo, que mata sem quaisquer escrúpulos; o padre Frank, cheio de atitude e de “telhados de vidro”; o polícia Tony, que procura levar uma vida de retidão; a estrela de cinema Catarina; e Carmela que, embora pareça normal e correta, com dois filhos à sua guarda, de noite é uma prostituta assasina dos seus amantes. Tudo isto parece um bocadinho over the top? Sim, é mesmo! Mas duma forma viciante.
O livro está dividido em 24 curtas histórias, de 8 páginas cada uma, cada uma delas com um título que é normalmente alusivo a um clássico do cinema. No entanto, estas histórias devem ser vistas mais como capítulos do que como histórias isoladas entre si, visto que, todas juntas, contam uma história maior. E isso até se sente mais neste segundo volume do que no primeiro. Em Spaghetti Bros – Vol. 1, como os autores estavam ainda a dar-nos a conhecer as várias personagens, algumas histórias pareciam mais isoladas entre si.
Neste segundo volume, embora alguns capítulos se foquem em aspetos mais concretos e relativamente independentes da história principal, a grande soma dos capítulos foca-se no romance do irmão mais velho, Amerigo, que parece finalmente encontrar uma mulher “a sério”, digna de ser sua esposa. Porém, nada é límpido nesta família e o que Amerigo ainda não sabe é que esta mulher mantinha uma relação com o irmão mais novo de Amerigo, o polícia Tony.
Ora, Trillo sabe utilizar muito bem todo o tipo de situações tensas e hilariantes que esta condição traz à trama, envolvendo também as outras personagens. O padre Frank, que neste volume, com alguma pena minha, parece estar mais sereno e menos agressivo, serve como pendor de retidão e tenta colocar juízo na sua família. Uma personagem nova e que ganha bastante importância neste segundo volume é James, o filho mais velho de Carmela, que acaba a servir como pombo correio entre Tony e Filomena. Não querendo adiantar mais sobre o argumento, com o receio de poder estragar algumas surpresas aos leitores que, inteligentemente, optarem por comprar este livro, digo apenas que a trama é muito divertida e pecaminosa de uma ponta à outra. Estão a ver Os Maias, de Eça de Queiroz, misturados com O Padrinho, de Mario Puzo? É mais ou menos nesse quadrante narrativo, que situo a família Centobucchi deste Spaghetti Bros.
O trabalho de Mandrafina é de enorme qualidade e continua em linha com aquilo já feito no volume 1. Tal como escrevi na minha análise a esse primeiro volume da série, o traço do autor é “ágil, habilidoso e permite-lhe uma caracterização fiel e extremamente bem executada, quer dos locais, quer das personagens. A sua capacidade para caracterizar as expressões faciais dos irmãos Centobucchi e das restantes personagens, é de um talento raro e maravilhoso. O seu traço é elegante e clássico, fazendo lembrar as ilustrações de Will Eisner, com as devidas diferenças, claro. Visualmente é uma obra incrível que dificilmente não agrada a um amante de banda desenhada.”
Para mim, é um autor que apenas peca um pouco na execução das capas. Não são feias mas poderiam ser muito mais apelativas. Abrindo aleatoriamente o livro encontramos facilmente uma ilustração mais marcante e impactante do que olhando para a capa e isso faz-me concluir que a arte visual da banda desenhada em si é fantástica e que as ilustrações das capas é que são um pouco mais “fraquinhas”.
A planificação das histórias é bastante clássica e rígida. As páginas têm quase sempre 6 vinhetas quadradas por página. E é muito raro que o autor fuja a isto. Mas mesmo que isto possa parecer algo repetitivo, posso garantir que se há coisas que Spaghetti Bros não é, é uma série repetitiva e entediante. Na verdade, a leitura da obra acaba por ser viciante. A pessoa lê um capítulo de oito páginas e quando o acaba diz para si mesma: “só mais uma história”. E, quando dá por si, já leu o livro todo!
Relativamente à edição, a Arte de Autor coloca no mercado mais um livro bem conseguido. Capa dura e com textura aveludada, tão agradável ao toque, e detalhes a verniz que embelezam o aspeto da capa. O papel é baço e de uma boa gramagem. Uma pequena nota menos positiva, apenas: embora a capa seja dura, parece-me um pouco fina demais, tendo em conta a grossura do volume, e isso faz com que o livro seja um pouco frágil, se não manuseado com cuidado.
Uma nota de louvor merece ser dada à editora. São muitas as séries fantásticas, de alta qualidade, em que a Arte de Autor aposta. Daí eu ter referido que o papel de uma editora também pode (deve?) ser de curadoria em relação à banda desenhada de qualidade. Na verdade, e digo-o da forma mais sincera possível, a Arte de Autor não tem uma única série que eu considere “má” ou que não valha a pena conhecer. Mesmo assim, realço que séries como Spaghetti Bros, Verões Felizes, Armazém Central, O Castelo dos Animais, Bouncer, entre outras, não são apenas maravilhosas, como obrigatórias numa boa coleção de banda desenhada. Já não falando na série clássica de Corto Maltese ou de fantásticos álbuns one shot que a editora lançou como O Azul é uma Cor Quente, Como Viaja a Água ou Shanghai Dream. O catálogo da editora melhora de mês para mês. De ano para ano.
Em suma, não me canso de recomendar Spaghetti Bros a todos os amantes de banda desenhada. Sejam os que gostam de histórias de gangsters, sejam os que gostam de uma boa comédia de situação, sejam os que apreciem uma excelente arte ilustrativa a preto e branco. Ou mesmo aqueles que, num mundo cada vez mais composto por uma moral sintética de dizer e fazer aquilo que parece unanimente correto, procuram algo verdadeiramente disruptivo, pecaminoso e eticamente incorreto. Spaghetti Bros é todas estas coisas e muito mais! Um must!
NOTA FINAL (1/10):
9.3
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Spaghetti Bros – Vol. 2
Autores: Trillo e Mandrafina
Editora: Arte de Autor
Páginas: 196, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Abril de 2021
Do melhor!! Adorei o 1 e já tenho este encomendado. Foi talvez a leitura mais surpreendente e interessante que li em 2020. Ricardo
ResponderEliminarCaro Ricardo. Estou consigo. Também foi das leituras de BD que mais me surpreendeu pela positiva em 2020. Se gostou do volume 1, este não vai desiludir. Um abraço e boas leituras.
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