sábado, 20 de fevereiro de 2021

Análise: Bouncer – O Ouro Maldito e O Espinhaço de Dragão

Bouncer – O Ouro Maldito e O Espinhaço de Dragão, de Boucq - Arte de Autor

Bouncer – O Ouro Maldito e O Espinhaço de Dragão, de Boucq - Arte de Autor
Bouncer – O Ouro Maldito e O Espinhaço de Dragão, de Boucq

Esta obra, editada pela Arte de Autor em 2018, reúne os dois últimos tomos desta série, cujo universo e personagens foram criados por Alejandro Jodorowsky e François Boucq. É uma série já com uma longevidade considerável que muito aprecio. E daquelas em que mesmo os leitores de banda desenhada que, normalmente, não apreciam o género western, (até) podem ficar fãs da série. Há fortes probalidades de que isso aconteça, pelo menos. Mas o factor mais assinalável neste álbum duplo, que congrega duas histórias, nomeadamente, O Ouro Maldito e O Espinhaço de Dragão é que, pela primeira vez, Jodorowsky não participa como argumentista, tendo o argumento ficado também a cargo de Boucq.

Se há elementos comuns a esta série é que estamos perante um argumento espetacularmente bem pensado por Jodorowsky. Já li muitas obras do autor e, não raras vezes, e ao contrário de uma grande quantidade dos seus fãs, acabo desiludido com o trabalho do autor. E digo isto porquê: parece-me que o autor tem uma grande facilidade em se deixar levar pelas suas ideias, por vezes boas, por vezes “espatafúrdias”, perdendo a noção da própria história. Já quando analisei o interessantíssimo segundo volume de Os Cavaleiros de Heliópolis, do mesmo autor, referi isso. Despejar ideias avulsas numa só mesma narrativa não traz, por si só, a garantia de um bom argumento. Pelo menos, na minha opinião. Uma coisa é ser-se criativo – ter-se muitas ideias. Outra coisa é ser-se um BOM criativo – ter-se muitas e BOAS ideias. Nem sempre Jodorowsky encaixa neste segundo grupo, a meu ver. E digo-o sabendo que, possivelmente, estarei a chocar muitos fãs do autor. Eu sou fã de algumas coisas do autor. E Bouncer é seguramente uma dessas coisas. Se não for mesmo a minha preferida. Acho que tudo aquilo que esta série tem – a violência, as mutilações, o conjunto muito bem equilibrado de personagens marcantes, o sexo, o desfile de aberrações, a componente mística – contribui para que a história seja um bom guisado de coisas que se tornam inolvidáveis para o leitor. É interessante, divertido, marcante, chocante e repugnante ler Bouncer. O mais difícil mesmo é ficarmos indiferentes. Ou amamos ou simplesmente não é a nossa cup of tea.

Bouncer – O Ouro Maldito e O Espinhaço de Dragão, de Boucq - Arte de Autor
E claro que, fãs da série como eu, podem ter torcido o nariz quando souberam que este álbum duplo – que abre e fecha um arco em si mesmo – não tinha Jodorowsky como argumentista. Mas não há razões para alarme. Boucq dá conta do recado. Tenho lido alguns comentários espalhados pela internet – quer em sites portugueses, quer em sites estrangeiros – que afirmam que esta história é “fraquinha” ou que não está ao nível das anteriores. Não concordo. Mesmo que possa não ser a minha favorita, acho que é justo dizer que está ao nível das anteriores. A enorme qualidade da série mantém-se lá.

Enquanto argumentista, Boucq foi inteligente. Para além do óbvio protagonista Bouncer, o cowboy maneta, o autor soube pegar em personagens já conhecidas e bem desenvolvidas da série como Yin Li, Job, Panchita e Blabbermouth e introduzir um conjunto de novas personagens marcantes, como o infame El Cuchillo, a muito obesa Condessa Esperanza, o cadavérico Skull e o aventureiro Capitão Ledrillant. Isto já para não falar da tribo das índias amazonas que assassinam, de forma mais do que violenta, todo e qualquer homem com quem se cruzam depois de, naturalmente, o obrigarem (à força) a engravidar uma das suas índias, de forma a assegurar as novas gerações da tribo, sem homens. Ou seja, por todos estes elementos, já se torna óbvio que este álbum de Bouncer navega em águas conhecidas.

Bouncer – O Ouro Maldito e O Espinhaço de Dragão, de Boucq - Arte de Autor
No entanto, Boucq consegue transformar esta história em algo mais terra-a-terra. Menos “louco” do que os antigos álbuns de Bouncer. Dizer isto não é dizer que não há aqui espaço para todos os elementos, já assinalados por mim, característicos da série. Claro que os há. No entanto, parece ser uma história mais sensata, de forma geral, em que há uma demanda mais clássica no género western.

Em termos de história, tudo começa quando a filha do relojoeiro de Barro City aparece morta e sem escalpe. E, desde cedo, Bouncer percebe que esse foi um asssassinato equivocado. Alguém procurava Panchita, cuja tatuagem parece assinalar um mapa para um tesouro maldito. É por isso que El Cuchillo rapta Panchita. E Bouncer, que tinha prometido olhar sempre pela sua protegida, parte então no encalço do raptor, que se faz acompanhar por uma enorme e obesa mulher – a Condessa Esperanza. Pelo caminho, acontecem vários eventos marcantes e voltas e reviravoltas.

Devo dizer que é uma história muito bem pensada e desenvolvida. O início até arranca com alguma lentidão mas acaba por ser importante para que Boucq aproveite para traçar bem a história, apresentar os seus novos personagens, e deixar o leitor sem grandes respostas acerca daquilo que vai acontecer adiante. E isso é muito bom. Quanto ao segundo tomo, já nos encontramos mais a acompanhar os desenvolvimentos da demanda de todas as personagens. É também onde há mais ação e onde a história se torna, a meu ver, mais linear. Mais focada no objetivo. Não é tão inspirada como a primeira parte da história mas também não desilude.

Bouncer – O Ouro Maldito e O Espinhaço de Dragão, de Boucq - Arte de Autor
De forma global, talvez este díptico seja mais terra-a-terra do que os outros volumes, com Jodorowsky. Talvez não tenha tanta violência (mas tem-na, ainda assim); talvez não tenha tanto misticismo (mas tem-no, ainda assim); talvez não tenha personagens tão chocantes (mas tem-nas, ainda assim); talvez não tenha tantas cenas de mutilações (mas tem-nas, ainda assim); nem tantas cenas de sexo (mas tem-nas, ainda assim). Ou seja, parece um Bouncer mais adulto e menos chocante. Uns acharão que ficou mais “chato”, outros acharão que ficou mais “maduro”. No meu caso, não sendo o meu Bouncer favorito, não deixa de ser um livro magnífico e que não mancha – em nada – esta fantástica série.

Quanto à arte, estamos perante mais uma obra de excelente qualidade por parte de Boucq (haverá alguma que não tenha qualidade?). O seu estilo é muito próprio e até admito que não seja do fácil agrado de todos. Lembro-me que, no meu caso, quando conheci pela primeira vez a arte do autor, há já largos anos, até não gostei muito. No entanto, é um estilo de arte que “primeiro estranha-se e depois entranha-se”. Hoje em dia, considero-o um autêntico mestre do desenho. Neste álbum de Bouncer as suas qualidades inegáveis mantêm-se bem presentes. Devo dizer, todavia, que não é dos melhores álbuns em termos de arte ilustrativa. E talvez isso se justifique pela abundância de cenas no deserto branco que levam a uma aridez demasiado pobre em termos visuais. Também certas cenas me pareceram um pouco rabiscadas demais, com pouco polimento gráfico – mesmo tendo em conta o estilo de ilustração do autor. São pequenas “queixas” ainda assim, porque, afinal de contas, continua a ser um livro muito bem ilustrado por Boucq.

Bouncer – O Ouro Maldito e O Espinhaço de Dragão, de Boucq - Arte de Autor
A edição da Arte de Autor é mais do que apetecível. A encadernação deste álbum em grande formato é excelente, com bom papel e um bom tratamento gráfico. Como nota menos positiva, achei o tipo de letra das legendas ligeiramente difícil de ler. Para comparar, fui ver o álbum anterior da editora, Bouncer - To Hell And Back e, embora o tipo de letra me pareça o mesmo, fico com a ideia que se lê melhor. Como se, nesse caso, as letras estivessem mais bem impressas que neste O Ouro Maldito e O Espinhaço de Dragão. É apenas um detalhe mas fez-me alguma confusão. Ou então sou eu que já estou a ficar um pouco “pitosga”.

Em conclusão, este Bouncer dá-nos mais uma fantástica aventura do cowboy maneta mais famoso de sempre. Com Boucq a assumir o papel de argumentista, para além do de ilustrador, posso dizer que os fãs da série não deverão ficar desiludidos e que, por ventura, a série até pode conquistar alguns interessados em western que, normalmente, não têm muita paciência para as excentricidades de Jodorowsky. Seja como for, não há como fugir a isto: Bouncer é dos meus westerns favoritos. E recomendo-o até àqueles que não gostam de obras deste género.


NOTA FINAL (1/10):
8.9


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Bouncer – O Ouro Maldito e O Espinhaço de Dragão, de Boucq - Arte de Autor

Ficha técnica
Bouncer – O Ouro Maldito e O Espinhaço de Dragão
Autor: François Boucq
Editora: Arte de Autor
Páginas: 164, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Outubro de 2018

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