Regreso al Edén traz-nos Paco Roca na sua melhor forma e assume-se como uma das melhores obras do autor espanhol. É fantástico da primeira à última página. Um autêntico triunfo na carreira de Roca.
Começo por dizer que não estava preparado para uma obra com uma densidade emocional como esta. Este é um daqueles livros que fica para a vida e onde Paco Roca consegue reunir duas coisas que lhe são características – embora nem sempre aconteçam em todas as suas obras, admita-se – que são a inteligência narrativa e a emotividade das suas histórias.
Regreso al Edén conta-nos a história de uma família valenciana, com base numa única fotografia, datada de 1946. É um livro com uma base autobiográfica tendo em conta que serve como homenagem à mãe e avó do autor, bem como a todas as mulheres espanholas do pós-guerra, que não tiveram nem uma oportunidade, além da de serem donas de casa. Assim, indo do presente ao passado, o autor revela-nos a história de cada elemento da família que aparece na foto – e até mesmo dos elementos que não constam no retrato. É, portanto, à volta desta única foto que gravita a narrativa. E este é um exercício que o Paco Roca faz de forma magistral, traçando ainda, ele próprio, um brilhante e acutilante retrato da história contemporânea de uma Espanha franquista, onde os republicanos eram vistos de forma tão negativa pelos demais.
Sem nunca ter um tom diretamente crítico face ao regime político-religioso que marcou – tão fortemente – a maneira de ser das gerações por ele afetadas, Roca oferece-nos uma imagem vívida e real sobre a sociedade espanhola, tal como se a família da protagonista, Antonia, fosse o protótipo de milhões de outras famílias espanholas deste espaço temporal.
A história é emocional mas nunca se fica com a ideia que se pretende passar um melodrama excessivo. Na verdade, é tão real o que aqui nos é dado que é nesse cômputo que assenta a riqueza emocional da obra. Os tempos eram duros no período da ditadura de Franco e ser-se de uma família pobre, como a de Antonia, condicionava a vida nas mais pequenas coisas. Nomeadamente na fome que sempre marcava presença. E na escassez de tudo o que era divertimento e lazer. Exceptuando, talvez, as fugazes idas ao cinema, em que Antonia se permitia sonhar. É-nos também passada a ideia dos numerosos “truques e malabarismos” que os adultos tinham que fazer para sustentar as suas crianças. Além disso, estes eram períodos de mentalidades fechadas e controladas pela igreja e pelo Estado – algo em que nós, portugueses, podemos encontrar um certo paralelismo, se recuarmos até ao longo período Salazarista que caracterizou décadas da nossa história recente.
Relativamente à arte de Paco Roca, o autor mantém-se a jogar em terrenos conhecidos. Temos o mesmo estilo de arte, em linha clara, que lhe é característico e que aqui se apresenta de semelhante modo. Não há muita coisa nova nesse cômputo aqui. Quem não gosta, deverá continuar a não gostar. E quem já gosta, gostará da arte aqui contida. Faço, no entanto, um pequeno destaque para algo que o merece. Quando, nas páginas 82 e 83, o autor ilustra a passagem do livro Génesis, em que Deus cria o universo, Adão e Eva, Paco Roca fez possivelmente as duas melhores páginas da sua carreira, em termos de ilustração. Fantásticas e um dos pontos altos desta obra.
Mas convenhamos algo: a arte ilustrativa do autor, sendo agradável, não é algo que tenha desenhos tecnicamente muito evoluídos ou que encha o olho de um amante de ilustrações maravilhosas. Mas não é por aí que Paco Roca quer ir. Onde o autor é fantástico é nas histórias que conta e, acima de tudo, COMO as conta. Regreso al Edén é uma autêntica obra-prima em termos de soluções narrativas para contar uma história. E é aí que este autor é fantástico e único. Sabe ritmar, sabe fazer aquilo a que chamo de “parêntesis narrativos”, em que se conta uma subnarrativa dentro da principal, mas sem que isso faça perder o domínio da história, por parte do autor, ou que leve a trama a “afogar-se” em si mesma. Neste livro, Roca tem total compreensão do fluxo narrativo. E utiliza-o como um verdadeiro mestre. A nós, leitores, cabe-nos a deliciosa tarefa de nos deixarmos levar por esta história sublime. Onde o pesado, o difícil, o triste e o negro parecem - à semelhança do que Roberto Benigni fez no filme A Vida è Bella - serem contados de forma leve, fácil, alegre e luminosa. O tom é leve mas o sentimento deixa-nos com um nó na garganta.
Paco Roca experimenta, arrisca, faz coisas diferentes aqui e ali, mas sempre sem se enterrar nas suas próprias divagações narrativas, como tantos autores de renome mundial – estou a lembrar-me de um Alejandro Jodorowsky ou de um Neil Gaiman, por exemplo – o fazem. E, a meu ver, esta é uma qualidade que nem sempre abunda em autores de banda desenhada. Ou temos aqueles autores mais straight, que nos contam uma história mais linear; ou temos autores mais excêntricos que nos contam uma história com demasiadas portas e travessas, que acaba por ficar demasiado remendada e perdida em si mesma. Paco Roca está algures no meio entre esses autores. As histórias, sendo simples, ganham pontos e abordagens mais profundas. E há mensagens subtis e algo mais para ler nas entrelinhas. Mas são histórias que nunca se perdem. Os pontos unem-se na perfeição e o equilíbrio é característica base neste Regreso al Edén.
Faço ainda um destaque à forma super original, plena de significado, com que Paco Roca começa e termina esta obra. Extremamente inspirada. E até mesmo, inspiradora.
Quanto à edição, da editora espanhola Astiberri, estamos perante uma edição bonita e cuidada. Não gosto particularente deste formato “deitado”, por várias razões. Não acho tão cómoda a maneira como se tem que segurar o livro para lê-lo e ainda me parece que a lógica da organização das pranchas não é tão legível. Por fim, é um livro que se arruma muito pior. O que, para todos os que são colecionadores de bd, é um ponto negativo. É uma embirração minha, reconheço, e não consigo mesmo gostar deste formato “deitado”. Mas foi a opção do autor, que já em A Casa, publicado pela Levoir, também utilizou este formato.
Falando na Levoir, que é uma editora que tem grande parte da obra do autor publicada em Portugal, diria que este Regreso al Edén será mesmo obrigatório para o seu catálogo. Sendo um autor bastante apreciado pelos leitores portugueses e tendo esta obra tanta qualidade, não há volta a dar. Regreso al Edén deve mesmo ser editado em português. Até lá, e para aqueles que não querem esperar, posso dizer que esta edição da espanhola Astiberri está muito bem conseguida e, sendo no idioma espanhol, e de texto fácil, lê-se muito bem. Talvez me tenham aparecido 4 ou 5 palavras em todo o livro que não percebi. Mas, não mais do que isso.
Em suma, fiquei verdadeiramente maravilhado com esta obra. Dos melhores livros que li nos últimos meses. E se não for a melhor obra de Paco Roca – há que não esquecer a soberba obra Rugas – está entre os dois/três melhores livros do espanhol. A sua publicação em português é urgente. E obrigatória.
NOTA FINAL (1/10):
9.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Regreso al Edén
Autor: Paco Roca
Editora: Astiberri
Língua: Castelhano
Páginas: 176, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Dezembro de 2020
Boa resenha Hugo - Paco Roca é um dos autores espanhóis que mais admiro, embora a sua obra seja desigual. Este formato agrada-me particularmente e só espero que alguém pegue neste título e o reimprima no formato que merece - capa dura e papel de qualidade.
ResponderEliminarObrigado pelas palavras, caro António. Sim, concordo que a obra de Roca é desigual. Há obras que me parecem apenas razoáveis e outras, como esta, que são fantásticas! Acredito que a Levoir possa editar este álbum em português. Mas veremos.
EliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarIsto não é o formato deitado :) é o formato italiano.
ResponderEliminarA escolha do formato não é algo que seja feito apenas por causa do aspecto. O Paco Roca muda de formatos, muito por causa do tipo de ritmo e registo que pretende para a história.
A escolha deste forma para a Casa e esta obra, é porque a história é mais intimista e não se prende em voltas e reviravoltas. É um slice of life, em que o leitor pode apreciar e não precisa de viradas de páginas ou splash pages.
Diria que o objectivo do Paco Rosa é criar um álbum de fotografias intimas.
Pelo menos há momentos em que há vinhetas que parecem vindas de uma máquina fotografica.
Concordo com o que dizes, Fernando. Poderá até fazer sentido e ser uma opção preferida por muitos leitores. Mas não é o meu caso. Admito que "embirro" um bocado com este formato.
EliminarE também há muitos livros "slice of life" que funcionam bem no formato vertical, sem terem as tais splash pages. Portanto, acho que, no final, tudo se trata de uma questão de gosto e subjetiva.