sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Análise: O Combate Quotidiano - Vol. 1



O Combate Quotidiano - Vol. 1, de Manu Larcenet

Quando comecei a leitura deste primeiro volume d’ O Combate Quotidiano, de Manu Larcenet (que reúne 2 dos 4 tomos da totalidade da obra e que é co-editado em Portugal pelas editoras A Seita e Arte de Autor), estava cheio de esperanças relativamente à qualidade da obra visto que já tinha lido o fabuloso O Relatório de Brodeck que, felizmente, também será lançado em Portugal em pouco tempo, pelas mãos da Ala dos Livros. E, claro, mesmo sabendo que o autor tem uma capacidade incrível para mudar drasticamente de estilo de ilustração, estava à espera de ser arrebatado com este O Combate Quotidiano. Isso viria a acontecer, pois esta é uma obra sublime e que deve ser (re)conhecida por qualquer leitor de banda desenhada, mas não no primeiro momento.


De facto, até tenho de admitir que as primeiras páginas me apresentaram um protagonista, que dá pelo nome de Marco, que me pareceu algo clichet, tendo em conta que representava mais um trintão imberbe que ainda é bastante mimado e apegado aos seus caprichos, que não está pronto para ingressar na vida adulta e que, mesmo profissionalmente, ainda não sabe bem o que quer fazer da vida. Já viram isto em algum sítio? A juntar a isso, também a própria personalidade de Marco me pareceu algo irritante e petulante. Não foi, portanto, uma leitura que me agarrou desde a primeira vinheta, nem tão pouco, da primeira página.

Contudo, à medida que a minha leitura ia progredindo, as personagens deste O Combate Quotidiano começaram gradualmente a conquistar-me. E, quando dei por mim, na passagem do primeiro para o segundo tomo, já estava completamente conquistado pela obra. O segundo tomo, então, ainda aprofundou mais o meu gosto por este livro marcante.

Afinal de contas, e por muito que Marco até me tenha irritado inicialmente, talvez eu tenha mais em comum com a personagem do que aquilo que gostaria de admitir. Eu e toda a gente! E é aí que a profundidade da leitura se adensa e compreendemos o quão maduro, inteligente e carregado de redenção é o primordial intuito desta fantástica saga de Manu Larcenet que, não tão surpreendentemente assim, venceu vários prémios, incluindo o Melhor Álbum no Festival de Angoulême, em 2004.


É que, o "combate quotidiano", essa luta que fazemos contra nós próprios, contra os que nos rodeiam - sendo eles, o nosso trabalho, a nossa própria família ou, até mesmo, a nossa própria cara-metade - é, possivelmente, o principal, e até derradeiro, combate que fazemos nas nossas vidas. Desde o primeiro momento em que, ainda crianças, começamos a lutar contra – ou, talvez, pela? – nossa vida. A importância das nossas vivências, que preservamos, que vão moldando a forma como vemos o mundo e que vai, indubitavelmente, sendo alterada à medida que vamos vivendo. É por isso que devemos tentar não ser tão taxativos sobre a realidade que nos rodeia. Eventualmente, iremos olhar para ela com outros olhos no futuro. Até porque, os olhos (também) já não serão os mesmos e verão coisas novas – ou velhas – à medida que o tempo for passando.

O Combate Quotidiano é, acima de tudo, uma história com um tom biográfico sobre um fotógrafo, na casa dos trinta, que opta por trocar a cidade pelo campo. Está carregado por pequenos vícios hedonistas, pelos seus próprios "macacos no sótão", que o levam a ser uma pessoa paranóica e com problemas do foro psíquico – e, por isso, é um caso clínico psiquiátrico. Fundamentalmente, Marco está preso na imagem da sua própria pessoa. Parece não conseguir, ou não querer, dar o passo seguinte na sua vida. Seja na sua relação amorosa, seja na sua vida profissional, seja na sua relação familiar. Está preso. Porquê? Porque se sente relativamente bem assim e tem medo de perder a razoável paz que há na sua vida. O que me leva ao pensamento existencialista de Ricardo Reis, de Fernando Pessoa: “para quê envolver-me com esta mulher, que amo, se, eventualmente, a vida nos há-de separar? Mais vale estar quieto, não?”. Mas, então, pergunto eu, para quê viver se, durante e no final do nosso caminho, teremos sempre desgraças à nossa espera? Será por este caminho existencial que Marco acabará por enveredar à medida que vai ganhando maturidade. E a conquista de maturidade é um ponto central nesta história. Maturidade que está patente não só a nível pessoal como, também a nível político-social.


Porque, de facto, embora seja uma história que se mascara de simples e linear, esta é uma obra complexa e profunda pelos temas que aborda. E, nesse sentido, também há uma boa fatia de questões políticas que, passados quase 20 anos desde o lançamento da obra original, se mantêm atualizadas nos dias de hoje. Tal como muitos de nós, Marco pensa ter um pensamento moderno e justo sobre as questões político-sociais que afetam a sociedade. E parece-lhe quase impossível que alguém pense de forma diferente das suas convicções. Todavia, com o passar do tempo e com a tal conquista de maturidade, que já referi, todos nós vamos ganhando horizontes maiores, que nos permitem ver os dois lados de uma mesma questão que, anos antes, nos parecia tão unidimensional. Por esse motivo, quando Marco vê que um dos seus amigos de infância, que trabalhava nos estaleiros navais com o seu pai, optou por votar em Jean-Marie Le Pen, primeiro acaba por não aceitar mas, com o tempo, consegue, pelo menos, compreender o porquê dessa ação. Não há aqui uma intenção partidária por parte de Larcenet, parece-me. Ao invés, existe uma tentativa de aceitação da diferença, da opção antagónica. Não propriamente a concordância com a diferença mas a aceitação da diferença. E também é por isso que a obra se reveste de maturidade. Parecem episódios mundanos e quase avulsos mas que acabam por balizar e condicionar a pessoa que Marco é. E isso acontece a todos nós. É por isso que, mesmo sendo uma história por vezes deprimente, todos nós temos pontos em comum com este personagem. Mesmo que até o achemos inicialmente irritante.

Há espaço para o humor mas não daqueles que nos fazem rir à gargalhada. Diria que, nesta história pesada, os momentos mais humorísticos servem apenas para aliviar um pouco a angústia que vai serpenteando as crises do protagonista.


Depois, quanto às ilustrações que o autor nos dá, este livro também engana o olho desatento. É que, à primeira vista, os desenhos são bastante “cartoonizados” e simples, não impressionando por aí além. Contudo, um segundo olhar, mais atento ao detalhe, encontrará um traço rápido e nervoso de Larcenet, é certo, mas com bastante pormenor e beleza, pautado por uma capacidade de grande fulgor artístico para assinalar momentos de reflexão, angústia, felicidade. E também as expressões das personagens são muito bem representadas – muitas vezes de forma caricatural – para que não sobejem dúvidas sobre aquilo que as personagens sentem ou experienciam. 

Confesso que me custou a lidar com os olhos das personagens que, por vezes, não apresentam pupilas nem íris e não passam de globos brancos sem expressão. Deu-me sempre a ideia de desenho inacabado. Há certos outros elementos que também mereciam um maior cuidado do autor - já que é justo dizer que ele conseguiria tê-lo feito, se quisesse. Claro que também se deve aceitar e compreender que, possivelmente não era essa a intenção do autor. Além de que nem sequer é isso que estraga o prazer de apreciarmos as ilustrações mas, a meu ver, se feito de outra maneira, poderia elevar a qualidade visual da obra.


Mas também não deixa de ser verdade que, globalmente falando, este é um livro bonito, com bonitas cores e várias ilustrações onde Larcenet nos mostra a sua diversidade e excelente arsenal de soluções gráficas narrativas para construir uma boa história em banda desenhada.

Quanto à edição da obra, as duas editoras fizeram um excelente trabalho, mais uma vez. Capa dura, bom papel baço, boa encadernação e boa impressão. O trabalho gráfico ao nível do design também está bem conseguido e destaca-se a bonita ilustração escolhida para a capa. Até as páginas de guarda do livro são lindíssimas.

A sensação final que o livro nos passa é bastante marcante. É um livro (falsamente) simples que, à medida que vai sendo lido, acaba por se impregnar em nós, fazendo-nos questionar certos comportamentos que nós próprios temos. É um verdadeiro manual da maturidade humana, de como ser mais tolerante face à diferença e de como esse comportamento nos leva – a nós e aos que nos rodeiam – à redenção. E tudo isto coloca-o como um excelente livro de banda desenhada. Parabéns às editoras A Seita e Arte de Autor por esta aposta em qualidade. Agora só falta esperar pelo segundo volume que concluirá esta saga.


NOTA FINAL (1/10):
9.6


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica
O Combate Quotidiano - Vol. 1
Autor: Manu Larcenet
Editoras: A Seita e Arte de Autor
Páginas: 120, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Setembro de 2021

2 comentários:

  1. Boa tarde Nuno, concordando no essencial com a sua análise mas não posso deixar aqui de introduzir um aspecto que considero essencial em qualquer obra de BD e que é, infelizmente, muitas vezes descurado ou posto em 2º plano - a balonagem e tipografia. Tenho esta obra na versão original e integral e salta demasiado a vista a "descaracterização" que resulta das opções tomadas na versão portuguesa. Passo a explicar: a versão original é totalmente manuscrita pelo autor que, nas variações do discurso e ênfase das expressões, introduz a força necessária para que estas funcionem, incluindo o uso da área "útil" do balão. O que se vê na versão portuguesa é exactamente o contrário - quem selecionou o tipo gráfico fez um mau trabalho - a fonte é demasiadamente uniforme (não há diferenciação entre caixas altas e baixas), não foram usados versaletes, e os espaços dentro da área útil do balão e texto são demasiadamente marcados. A questão poderia ser resolvida de 2 formas: 1 - fazendo uma pesquisa exaustiva na abundante e diversificada oferta que existe no mercado, ou 2 - recriando a e adaptando a caligrafia original para formato digital (como acontece, por norma, no mercado brasileiro...). Lamento que ambas as editoras tenham prestado pouca atenção a este pormenor - não retira valor a obra mas diminui-a parcialmente.

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    1. Caro António. Muito obrigado pelo comentário, provido de informações relevantes sobre a tipografia. Confesso que não tinha lido a obra original e, portanto, descurei essa questão da tipografia, que não me causou nenhum transtorno na leitura desta obra. Ainda assim, sou da opinião que é sempre positivo que as edições portuguesas se aproximem das edições originais tanto quanto possível.

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