sexta-feira, 17 de julho de 2020

Análise: Morro da Favela (2.ª edição, aumentada)



Morro da Favela (2.ª edição, aumentada), de André Diniz

A primeira edição de Morro da Favela não é de agora. A publicação original do livro no Brasil data de 2011. Em Portugal, o livro também já havia sido editado pela Editora Polvo em 2013. Em 2020, e possivelmente a propósito da exposição dedicada à obra que teve lugar na casa Pau-Brasil, em Lisboa, a Polvo publicou uma nova edição do livro, que teve uma nova ilustração de capa, 12 páginas inéditas, e uma edição em capa dura.

E ainda que eu tenha estado muitas vezes para ler a obra, sobejamente conhecida por quem acompanha a banda desenhada, Morro da Favela só me chegou às mãos há uns dias. E tenho que dizer taxativamente: que magnífico livro! Que maravilha.

O livro retrata as memórias do fotógrafo Maurício Hora, que nasceu e cresceu (e ainda vive) no Morro da Providência (ou Morro da Favela), no Rio de Janeiro, que é a primeira favela brasileira e que já existe desde 1897. A narrativa assume assim um cariz biográfico, pois conta-nos a experiência de um nativo do local, as suas relações com o crime organizado, o tráfico de droga, a agressiva ação policial e acima de tudo, o seu crescimento desde a infância até à idade adulta. Revela-nos igualmente como o protagonista da história, Maurícia Hora, descobre e desenvolve a sua vocação para a fotografia e como a mesma teve um papel tão importante não só para si mesmo, como também, para que o mundo exterior visse com “olhos de ver” aquilo que é a vida nesta favela, através de um retrato transparente e fidedigno que é aquilo que - digo eu! - qualquer fotógrafo almeja fazer.

A obra é escrita e desenhada por André Diniz, um autor que muito admiro e cuja obra O Idiota até apareceu recentemente no TOP 15 das melhores novelas gráficas da Levoir e Público

Começando pela arte gráfica da obra, André Diniz apresenta uma arte extremamente original e disruptiva em relação àquilo que estamos habituados a encontrar numa banda desenhada. Sendo uma obra a preto e branco, o autor apresenta-nos um contraste total nas suas imagens, trabalhando e explorando muito bem o espaço negativo das suas vinhetas, à semelhança do que faz, por exemplo, Frank Miller em Sin City – ainda que o estilo de desenho dos dois autores seja depois muito diferente entre si. Para além destes contrastes entre preto e branco, André Diniz tem um traço muito grosso e uma geometrização que é aplicada às suas imagens. As feições, os cabelos, os narizes, as mãos, as casas, os cenários… enfim, praticamente tudo o que André Diniz desenha, é representado com formas geométricas: triângulos, quadrados, retângulos, círculos. Diria que o autor conseguiu criar um universo pictórico só dele. É bom? Sim, é! É para todos os amantes de banda desenhada? Provavelmente não. Tem demasiada personalidade, reconheço. Mas, no meu caso, e sublinhando que esta é a parte subjetiva na minha análise, é uma arte ilustrativa que me convence e onde gosto de mergulhar. 

Mas André Diniz não é apenas um bom ilustrador. Também é um excelente contador de histórias. E a forma como nos narra esta história, é de mestre. Com um discurso na primeira pessoa e com diálogos bem construídos, leva-nos a viajar no espaço e faz-nos sentir como se estivéssemos em plena favela. Se os excelentes filmes Cidade de Deus, de Fernando Meireles e Tropa de Elite, de José Padilha, nos revelaram a violência (e redenção?) que se experienciam nas favelas brasileiras, Morro da Favela ombreia com esses dois filmes, devido a ser um retrato tão humano, real e violento da vida no Morro da Providência.

Gosto também como o livro não procura necessariamente encontrar "bons" e "maus", "heróis" e vilões", limitando-se a descrever e a narrar as coisas como são, de uma forma genuinamente transparente. Há ainda alguns separadores ao longo da história, com páginas apenas de texto, que muito enriquecem e experiência, dando profundidade àquilo que é narrado através dos desenhos. As fotografias de Maurício Hora são mais um bónus apetecível. 

Relativamente às 12 novas páginas, são uma adição muito bem-vinda pois permitem ao autor, fazer um update à situação vivida atualmente no Morro da Providência, com as profundas alterações causadas pela organização do Campeonato do Mundo de Futebol (em 2014) e os Jogos Olímpicos (em 2016) por parte do Brasil; e, também, com a criação da Casa Amarela, um centro cultural comunitário, reconhecido internacionalmente, que Maurício Hora fundou com o artista francês Jean René.

Quanto à edição, a Polvo deu um enorme salto qualitativo. Não só esta segunda edição tem mais páginas e uma encadernação em capa dura, como apresenta igualmente um papel de boa qualidade, que faz justiça à relevância desta obra. Esta é "a edição" que se deve comprar do livro. E, devido ao desenlace na história que as 12 novas páginas nos trazem, até diria que mesmo aqueles que já têm a primeira edição do livro, deviam ter esta. Não são apenas mais 12 páginas para "encher", como muitas vezes é feito. São 12 páginas que resolvem bem a história, que acrescentam algo relevante ao todo.

Em conclusão, Morro da Favela, é um retrato pungente, verdadeiro, sentido e maravilhoso daquilo que é a vida na Favela do Morro da Providência, no Rio de Janeiro. No final, a sensação com que ficamos após esta leitura é dum arrebatamento emocional. De quase nos deixar com as lágrimas nos olhos. Mais do que um livro de banda desenhada maravilhoso, este é um livro maravilhoso que qualquer pessoa - goste ou não de banda desenhada - deve ler. Obrigatório.


NOTA FINAL (1/10):
9.2

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Ficha técnica
Morro da Favela (2.ª edição, aumentada)
Autor: André Diniz
Editora: Polvo
Páginas: 140, preto e branco e cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Fevereiro de 2020

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