Kick-Ass, de Mark Millar e John Romita Jr.
Kick-Ass é das bandas desenhadas norte-americanas mais interessantes das últimas décadas! Se, a meu ver, há um livro onde o talento de Mark Millar brilha bem alto, esse livro é Kick-Ass. Com uma premissa muito back to basics daquilo que é – ou poderia ser – um super-herói no tempo atual, Millar, com arte ilustrativa de John Romita Jr., consegue dar-nos uma obra-prima da banda desenhada, desconstruindo as leis originais dos super-heróis, mas honrando-as ao mesmo tempo, naquilo que é uma carta de amor, ao universo dos comics americanos. Passarão décadas e este livro continuará a ser refrescante e obrigatório na biblioteca de qualquer pessoa que se considere fã de banda desenhada.
A série foi originalmente lançada em 2010 e, desde então, entre volumes da história principal de Kick-Ass, da personagem secundária Hit Girl ou dos Novos Kick-Ass, (dos quais, a G. Floy lançou, muito recentemente, Kick-Ass: A Miúda Nova Vol.1) o universo editorial desta série já conta com 11 livros. E também já foram feitos dois filmes para Kick-Ass.
Aquilo que Mark Millar faz aqui, em termos de história, é desmontar a premissa de um super-herói e começar do zero. Como seria então um super-herói nos dias de hoje, em que os media e as redes sociais estão tão presentes na nossa vida? Em que tantas pessoas espetam tudo sobre as suas vidas, nas redes sociais: o que fazem, o que comem, o que vestem, de quem e do que gostam? Em que muitos de nós acompanhamos e seguimos a vida de pessoas que nem conhecemos – os chamados influencers? Agora imaginem isso na vida de um adolescente. Que tem todos os problemas e dramas normais da adolescência e que quer encontrar aceitação junto da miúda gira da escola, junto dos amigos nerds e das pessoas à sua volta? Tendo refúgio na banda desenhada como tantos os que visitam o Vinheta 2020 tiveram - e têm, imagino - quem nunca sonhou em tornar-se um super-herói? As razões poderiam ser várias: para lutar contra o mal, para ajudar os necessitados, para fazer a diferença. Ou para se sentirem amados e adorados pelos demais. Ou simplesmente, porque os super-heróis das histórias aos quadradinhos marcaram as suas vidas. Este será um sonho que já atingiu muitos de nós. Um sonho de miúdo com repercussões na vida de um graúdo.
Com esta premissa verdadeiramente interessante, Mark Millar apresenta-nos a história de Dave Lizewski. Um adolescente de Nova Iorque, como qualquer outro. Com os receios e inseguranças comuns. E que, tal como os seus amigos, se refugia na banda desenhada. E num dia, imagina: “porque não tornar-me num super-herói?”. A diferença é que Lizewski parte mesmo da teoria para a prática e, depois de comprar um fato de mergulhador no ebay, sai para a rua a meio da noite, mascarado, com o intuito de combater o crime. A experiência, naturalmente, não corre como o esperado e Dave Lizewski acaba numa cama de hospital. Mas já lá irei.
Mark Millar faz muitas coisas bem feitas neste livro. Mas esta "noção da realidade" é talvez a coisa mais interessante neste livro. É que o autor, ao contrário, aliás, daquilo que faz noutros livros - como recentemente, demonstrei em A Ordem Mágica, por exemplo - aparece em Kick-Ass com uma certa contenção narrativa, completamente focada no (bom) desenvolvimento do protagonista. E isso, é o cerne para que Kick-Ass seja tão bom. E o genial desta obra, é que Kick-Ass parece reunir em si características auto-biográficas de qualquer amante de banda desenhada. Este Dave Lizewski não é apenas o reflexo da personalidade de Millar. Ou de Romina Jr. É, também, o reflexo, de mim ou daqueles que me lêem e que são fãs de banda desenhada. Talvez até mesmo, daqueles que nem sequer pegam num livro de banda desenhada mas que também foram marcados pelas histórias de super-heróis no cinema, nos desenhos animados, nas histórias contadas por amigos ou em qualquer outro meio, que não a banda desenhada.
Voltando à história, depois da primeira aventura de Dave Lizewski enquanto super herói, o levar a uma cama de hospital, ele decide abandonar a sua curta vida de herói. Mas apenas durante uns tempos. E, numa segunda tentativa, e embora seja novamente espancado, consegue salvar um homem de sofrer uma forte dose de pancada. E, melhor do que isso, há uma pessoa que o filma e que coloca o vídeo na internet, levando Dave a tornar-se numa figura mediática e a receber o nome “Kick-Ass” pelos seus seguidores. Isto levá-lo-á a influenciar muitos outros adolescentes que começam a vestir-se de super-herói. Eventualmente, o protagonista dá de caras com uma rede de criminosos da Máfia e com outros super-heróis – como Hit-Girl, Big Daddy ou Red Mist - que também lutam(?) para combater o crime.
Mark Millar nunca perde as rédeas da história, tendo sempre muita noção para onde quer ir, que novas questões determinada ação vai levantar e assegurando que a narrativa se mantenha bem ritmada, bem humorada e com muita ação. Mas sempre, a um nível plausível. Sendo, talvez, extremamente improvável que esta história acontecesse, a verdade é que é totalmente possível de acontecer. E esse é um trunfo do autor. Destaque positivo para o final da história que, embora consiga deixar algumas janelas abertas, em termos narrativos, consegue fechar muito bem o livro.
Olhando para a forma como a história é contada, somos remetidos um pouco para o Homem Aranha que, tendo sempre um discurso que nos vai narrando os acontecimentos… permite-nos saber os seus pensamentos e observações, dando-nos de bandeja, e de forma inequívoca, uma clara imagem da personalidade do protagonista. As piadas que vai dizendo nestes monólogos, também permitem a introdução de um sentido de humor, que faz lembrar o de Peter Parker. Kick-Ass tem um tom algo juvenil, mas acho que é um livro que se lê bem na idade adulta. Não me parece demasiado teen.
A arte de John Romita Jr. encaixa que nem uma luva na história de Millar. Os desenhos são dinâmicos, cartoonished, com um estilo bastante personalizado no traço, que apresentam uma modernidade muito contemporânea que é tudo o que Kick-Ass, sendo uma personagem dos nossos dias, precisava. As violentas cenas de ação também são uma mais valia em termos de arte, com o artista a sabê-las desenhar com a dinâmica e velocidade que eram requisitadas.
A edição da G.Floy é um mimo para os colecionadores. Boa encadernação, papel adequado ao estilo de história e uma tradução muito feliz, que capta a linguagem agressiva utilizada e as piadas que aparecem.
A violência poderá por vezes parecer gratuita com várias imagens a serem muito explícitas. Mas, a meu ver, esta é uma história que quer, de certa forma, marcar o leitor. E isso é apenas uma das muitas armas que os autores utilizam. De facto, este Kick-Ass tem tudo o que é preciso para não ser facilmente esquecível: palavrões, lutas agressivas, uma paixão não correspondida, sangue, suor, lágrimas. Um livro que sabe ser muito rock n roll.
Em conclusão, este pode-se dizer que a obra tem um título muito adequado porque it kicks some serious ass. Quer literalmente, devido a toda a violência que apresenta, quer no sentido figurado, pois consegue ser uma lufada de ar fresco na concepção de novos super-heróis. As cartas são dadas e baralhadas muito bem por Millar. Alguns poderão considerar esta obra um pouco over the top. Exagerada. Mas outros, incluindo a minha pessoa, consideram-no verdadeiramente espectacular. E obrigatório.
NOTA FINAL (1/10):
9.3
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Ficha técnica
Kick-Ass
Autores: Mark Millar e John Romita Jr.
Editora: G. Floy
Páginas: 208, a cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Fevereiro de 2019
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