Análise: A Universidade das Cabras

A Universidade das Cabras, de Christian Lax

A Arte de Autor parece estar a começar o ano 2024 com boas escolhas editoriais. Esta A Universidade das Cabras, de Christian Lax, lançado ainda durante este mês de março, é mais uma obra de qualidade superior, presumivelmente direcionada para um público com alguma cultura e conhecimento em termos de banda desenhada, que a editora portuguesa edita por cá.

Tendo sido uma obra muito referenciada em vários prémios internacionais de banda desenhada, devo admitir que estava bastante curioso em ler este livro.

Quando a história arranca, com a caminhada do professor itinerante Fortuné Chabert, estamos no ano de 1833. Acompanhamo-lo a percorrer longos caminhos nos Alpes do Sul, com o destino de chegar às várias aldeias que encontra pelo caminho para aí ensinar as crianças a ler, a escrever e a saber aritmética. De outra forma, estas crianças habitantes de aldeias remotas, não teriam acesso à educação. Passadas umas páginas deste A Universidade das Cabras – cujo nome deriva deste mesmo método de ensinar de forma itinerante – já vemos Chabert entre os índios Hopi do Arizona, nos Estados Unidos. E mesmo achando-se num local tão diferente e remoto do primeiro, o seu desejo de ensinar crianças mantém-se intacto. Entretanto, a história dá ainda mais um salto no tempo, levando-nos a conhecer a personagem de Sanjar que, em 2018, percorre as montanhas do Afeganistão com um quadro de ardósia às costas, com o mesmo motivo de ensinar as crianças das pequenas aldeias sem acesso à escola. E, curiosamente, sendo duas personagens diferentes, a verdade é que há uma ligação entre elas. E essa ligação pode ser testemunhada a vários níveis. Um desses níveis não revelarei, para não estragar a surpresa de leitura a ninguém. Mas o outro nível da ligação entre as duas personagens, verifica-se no facto de, quer Fortuné, quer Sanjar, terem o gosto e a vocação, o sentido de missão, que é a prática de ensinar as crianças.

Todo o livro acaba, por isso, por ser uma ode à educação e à constante necessidade de tal. De quem a recebe e de quem a dá. Até porque, desde o princípio dos tempos – e este A Universidade das Cabras é um claro exemplo disso – a escola sempre foi temida, proibida e perseguida por todos aqueles que procuram o obscurantismo político-intelectual.

No fundo, olhando para a história desta obra, estamos perante um “três em um”. Dos Alpes Suíços passamos para o faroeste americano e, depois, para um tempo mais atual que saltita entre o Afeganistão e os Estados Unidos.

Assim, a premissa desta história, num livro que não chega às 150 páginas, e com a ação a desenrolar-se em tão distintos tempos cronológicos e zonas geográficas, é audaz. E arrisco mesmo dizer que tinha tudo para falhar redondamente. Mas, de alguma forma, Christian Lax consegue ser bem sucedido nesta arriscada empreitada. Isto se tivermos em linha de conta o principal pressuposto e motivo primordial da obra, já referido.

É verdade que podemos considerar que alguns saltos no tempo são, do ponto de vista narrativo, um pouco forçados e quase aleatórios, mas, à medida que vamos mergulhando na forma narrativa do autor, que mais do que contar uma história em que o evento A condiciona o evento B, procura tecer uma reflexão profunda sobre a educação e a forma como a mesma, de variadíssimos modos diferentes, tem sido relegada para um segundo plano ou, mais grave ainda, tem sido negada a tantas pessoas. Porque pessoas educadas, já se sabe, são pessoas mais capazes. E nem sempre isso é consentâneo com interesses político-económico-culturais de outrem.

Creio ser esse louvor àqueles que, correndo risco de vida, oferecem a sua existência a tantas crianças que educam, partilhando os seus conhecimentos e colocando nelas a semente do conhecimento, aquilo de belo e raro que esta obra tem para nos oferecer – até porque, convenhamos, não é tão frequente assim vermos este tema a ser retratado em banda desenhada, ou noutros meios artísticos.

Quanto à vertente visual da obra, Lax acompanha a singeleza do argumento, oferecendo-nos belos e suaves desenhos que pintam com uma beleza evocativa uma grande diversidade de cenários que servem de moldura aos diferentes tempos e locais de ação. Com efeito, temos cenários onde a neve é espessa e a sua brancura cobre as ilustrações; temos cenários onde o castanho e o amarelo da terra árida impera; e temos cenários citadinos onde é a cidade a paisagem de fundo.

E acaba, portanto, por haver um conjunto de desenhos que são verdadeiramente lindos e que nos tiram o fôlego, deixando-nos a observá-los durante vários momentos. A suavidade do traço do autor, as belas cores que criam a atmosfera certa para cada uma das cenas que nos são apresentadas, passem-se elas onde se passarem, é verdadeiramente gratificante.

Em termos do desenho de personagens, mesmo admitindo que há desenhos belíssimos, não diria que este seja um trabalho totalmente imaculado porque, aqui e ali, encontram-se algumas expressões e algumas posturas que poderiam estar mais aprimoradas, quanto a mim. Mesmo assim, este é um daqueles livros que tem o condão de, de um momento para o outro, nos deixar desarmados perante tão bela cena. Aconteça ela nos cenários gélidos dos Alpes franceses, nas paisagens áridas e arenosas do Afeganistão ou na selva urbana do Arizona, nos Estados Unidos da América. 

O traço do autor é muito elegante e lembra-me, com as devidas distâncias, claro, uma mistura feliz entre o estilo de desenho de Hermann com o de Gibrat.

A edição da Arte de Autor é expetavelmente apetecível. A capa é dura com textura aveludada e suave ao toque. No miolo, o papel é brilhante e de boa qualidade, e a impressão e encadernação também são de nível elevado. O livro é composto por um posfácio de Pascal Ory que acrescenta mais uns "pozinhos" para melhor mergulharmos no livro.

Nota para o facto de, a somar a este livro, a Arte de Autor, ter lançando em simultâneo O Lobo, de Rochette. Sendo que cada um destes livros é bom à sua maneira, o que acho interessante é que são duas propostas de banda desenhada de qualidade superior, por ventura não tão comerciais como outras propostas da editora, para um público conhecedor e exigente. Acho relevante e meritório que a editora não procure “lançar mais do mesmo”, mas sim alargar a sua oferta sempre com a bitola da qualidade como ponto de partida. E de chegada.

Concluindo, A Universidade das Cabras é um belo livro que consegue passar uma mensagem clara sobre a relevância da educação para fazermos do mundo um espaço melhor para todos e onde o obscurantismo não pode (ou deve) ter lugar. Depois do resultado das últimas eleições legislativas por cá, parece que os significados que ficam subentendidos aquando da leitura deste livro, são ainda mais reveladores.

NOTA FINAL (1/10):

9.1

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Ficha técnica

A Universidade das Cabras

Autor: Christian Lax

Editora: Arte de Autor

Páginas: 152, a cores

Encadernação: Capa dura

Formato: 210 x 285 mm

Lançamento: Março de 2024