Aos poucos e poucos, tenho vindo a ler (quase) todos os livros lançados pela Levoir e pelo jornal Público na sua última coleção de Novelas Gráficas, e a sensação geral com que tenho ficado tem sido bastante positiva. A meu ver, esta última coleção até pode não ter sido aquela que apresentou nomes mais sonantes da banda desenhada mundial, mas, mesmo assim, talvez tenha sido das mais bem equilibradas em termos qualitativos. Hoje trago-vos Assombrada, de Shaghayegh Moazzami. Não sendo, nem de perto nem de longe, um mau livro é, quanto a mim, o menos marcante até agora - mesmo assim, relembro que ainda me falta ler Alexandra Kim, de Keum Suk Gendry-Kim, e Estampas 1936, de Felipe Hernández Cava e Miguel Navia.
A temática deste Assombrada volta a colocar-nos perante as atrocidades praticadas sobre os cidadãos iranianos pelo regime autoritário que ainda impera no país. Algo como também podemos testemunhar em Uma Metamorfose Iraniana, de Mana Neyestani, ou Mulher Vida Liberdade, editado pela editora Iguana.
Desta vez, acompanhamos a história real de Shaghayegh Moazzami, uma mulher iraniana que se viu forçada a migrar para o Canadá para aí poder viver uma vida mais livre, exercendo a sua atividade de cartunista, já que, no Irão, seria impensável ter semelhante ocupação profissional. Para tal, teve que casar - sem que sentisse um grande laço pelo noivo, convenhamos - para mais facilmente poder ter acesso à saída do país. Mesmo assim, não foi tarefa fácil.
O livro começa por nos mostrar a existência da autora no Irão, onde o lugar que a sociedade local tem reservado para as mulheres mais não é do que um lugar secundário, irrelevante e onde as mesmas têm que estar sobre o jugo dos homens. Shaghayegh Moazzami vê-se então na necessidade de fugir dali para fora, de procurar um lugar onde possa viver de forma mais livre e fazer uso da sua formação académica em artes.
E é já quando se encontra no Canadá, com uma vida semelhante a todos aqueles que vivem no livre mundo ocidental, que a autora, mesmo conseguindo escapar ao regime reinante no seu país, verifica que não consegue encontrar a desejada paz de espírito. Parece estar presa a uma ideologia que lhe foi imposta por outrem, como se (ainda) estivesse “assombrada” pela cultura, religião e forma de ver o mundo que lhe foi dada pela sua família e país, durante toda a sua vida. E é isso que leva ao aparecimento de uma voz interior, de censura, de questionamento constante, que parece criticar tudo aquilo que Shaghayegh Moazzami agora pode viver.
Assim, qualquer coisa que faça ou pense que vá de encontro aos valores que lhe foram dados, faz com que esta voz interior, esta consciência negativa, a condene. Consciência essa que, visualmente falando, nos aparece sob a forma de uma velha rabugenta, ultraconservadora e preconceituosa. É um exercício muito curioso e bem-talhado pela autora, que nos permite traçar um claro perfil entre o que somos e aquilo que os outros achavam que devíamos ser. Ou, melhor ainda, aquilo que achamos que os outros acham que devemos ser.
Portanto, mesmo fugindo da prisão de costumes e valores que era o seu país, Shaghayegh Moazzami permanece prisioneira dos mesmos, pois esta velha imaginária que a repreende por todo e qualquer tipo de comportamento ocidental que a mesma possa fazer, como fumar ou andar de bicicleta, não a deixa usufruir realmente da sua vida.
A história vai alterando entre os momentos do tempo presente, no Canadá, e os momentos do passado que antecederam a sua luta por encontrar outro destino além do Irão.
Em termos de ilustrações, a autora oferece-nos um trabalho a preto e branco, bastante cru, onde, em vários momentos, a cor amarela aparece para assinalar elementos relevantes. Em termos gráficos, gostei da forma como, através do cinzento, a autora nos oferece sombreados com profundidade através de um desenho bastante livre.
Mesmo assim, torna-se claro que a autora apresenta algumas debilidades ao nível da anatomia das personagens, bem como na planificação da obra ou no sentido narrativo que a linguagem corporal das personagens teima em não apresentar.
Em termos de legendagem, este é um livro bastante pavoroso. Cada balão é extremamente grande em dimensão, tapando muito mais do que o necessário as ilustrações da autora. E o próprio estilo de letra, em termos de font, também é mal escolhido. Quem acompanha o Vinheta 2020 até sabe que eu não sou dos leitores mais “picuinhas” em relação a este tema da legendagem, mas, no caso de Assombrada, é por demais evidente que não funciona bem. E que acaba por dar à obra um aspeto menos profissional do que o que seria esperado. Dei-me ao trabalho de ir verificar se a “culpa” disto era da edição portuguesa e verifiquei que não é. Os problemas na legendagem já vinham da obra original, portanto a Levoir limitou-se a ser fiel à primeira edição da obra.
De resto, em termos de edição, o livro apresenta-nos capa dura, papel decente, boa encadernação e boa impressão. No início do livro temos um prefácio feito por Joana Fernandes e, no final, temos um generoso glossário, com mais de 18 páginas, em que a autora nos apresenta algumas das regras, personalidades e costumes da cultura iraniana, para a melhor compreendermos. É um contributo bem-vindo e que aumenta o cariz didático da obra.
Em suma, Assombrada traz-nos (mais) um testemunho interessante acerca da experiência de se ser mulher e iraniana, e de, em consequência disso mesmo, estar-se cativa da condição de nunca se poder ser livre. Mesmo que se consiga fugir para um país a milhares de quilómetros de distância do Irão. Sendo um livro que apresenta algumas fraquezas, vale sobretudo pelo testemunho que nos oferece.
NOTA FINAL (1/10):
7.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Assombrada
Autora: Shaghayegh Moazzami
Editora: Levoir
Páginas: 224, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Agosto de 2023
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