Vou confessar-vos algo pessoal porque acho que esta minha confissão pode ser benéfica para alguns dos que me leem: se havia livros para os quais eu não estava especialmente empolgado para mergulhar na leitura, O Mundo Sem Fim, de Jean-Marc Jancovici e Christophe Blain, era um desses livros. Pronto, já o disse. Perguntar-me-ão: “porquê?” e eu dar-vos-ei duas razões.
Em primeiro lugar, confesso estar um pouco farto de banda desenhada científica ou banda desenhada didática (como lhe quiserem chamar). Não me entendam mal: eu acho que a BD didática é fantástica para educar facilmente os que a leem e, por outro lado, até pode trazer novos leitores para a 9ª arte. Portanto, eu vou ser daqueles que sempre terá a bandeira da BD científica/educativa hasteada. No entanto, confesso que tenho lido muitos livros deste género e que já me sinto um pouco saturado pelos mesmos. Aliás, quando se diz que as editoras portuguesas editam muita BD do género western, eu sinto que a tendência no lançamento de BD educativa é bastante maior, até. Citando alguns livros do género, assim de cabeça, lembro-me que a editora Penguin lançou duas obras (em quatro volumes) que foram Sapiens - Novela Gráfica ou O Mundo de Sofia. A Gradiva, por seu lado, já lançou mais de duas dezenas de bandas desenhadas de cariz didático. A própria nova coleção dos Clássicos da Literatura Portuguesa em BD, da Levoir, também pode ser vista como BD educativa. E agora, a editora Ala dos Livros decidiu lançar este O Mundo Sem Fim. Do género de BD educativa, também.
Mas este não é um livro qualquer.
O que me leva ao segundo motivo para não estar tão empolgado para esta leitura: é que se trata de um dos maiores bestsellers de BD dos últimos anos. Só em França, o livro já superou o milhão de unidades vendidas, tendo até suplantado, nos TOPs de vendas, esse habitual campeão de vendas que dá pelo nome de Astérix! Ora, se esta valência aguçou a minha curiosidade, concedo, também fez, por outro lado, soar os meus alarmes do "anti-moda". Nem tudo o que é muito referenciado merece essa mesma referência.
Portanto, e desculpem a longa introdução deste texto, mas, quando peguei neste livro para o ler, franzi a sobrancelha e disse para mim mesmo: “vamos lá ver o que é que este livro tem de tão especial”. Depois de finda a leitura, meus caros, não tenho pudores nenhuns em dar o braço a torcer, e dizer-vos que demorei poucas páginas a perceber o porquê de tanto alarido à volta de um livro! O Mundo Sem Fim é um livro especialmente bem feito, que merece ser lido, não pelos amantes da banda desenhada, apenas, mas por toda a gente. Deveria até ser adquirido massivamente pelas bibliotecas escolares deste país. Porque bandas desenhadas educativas, há muitas, como já referi. Mas O Mundo Sem Fim assume-se como uma proposta de qualidade superior nesse vasto mundo das bandas desenhadas que, para além de entreter, também permitem educar - e refletir.
Aquilo que aqui nos é proposto é uma reflexão sobre as alterações climáticas e os desafios sobre a necessidade energética da qual a vida humana carece. Dito assim, pode parecer um bocado insipiente, não? Pode soar como um sumário chato, talvez? Não se apoquentem: eu não tenho vinte avos da eloquência do autor. De uma forma simples de entender, mas com método e conhecimento, Jancovici vai ao cerne da questão, apresentando o passado recente que nos fez chegar ao mundo atual, em que a nossa vida é tão dependente da energia, e os desafios e obstáculos que a mesma levanta para a nossa existência futura. A nossa e a de todo o planeta. Com a quantidade enorme de energia necessária para fazer o nosso dia-a-dia avançar e com o crescente aquecimento global, como será a vida dos nossos filhos? Ou dos nossos netos? Ou dos filhos destes?
A "aula" de Jancovici é fenomenal. Aliás, dou este exemplo frequentemente e até não me espantaria se já não o tivesse dado aqui no Vinheta 2020 noutra ocasião: desde os meus tempos de estudante que percebi que um professor pode fazer com que tenhamos interesse em conhecer determinada matéria. E, infelizmente, também existe o contrário: há professores que, por muito boas que sejam as suas intenções, não conseguem fazer nascer o interesse dos seus alunos pelas matérias lecionadas. Aconteceu-me na disciplina de história, por exemplo. Tive professores que me fizeram adorar essa disciplina e tive professores que, lamentavelmente, fizeram com que todo o meu interesse no tema se esvaísse. Jancovici é um desses "professores" que nos fazem gostar dos temas que lecionam, que nos marcam para a vida, que nos contagiam com o seu pensamento racional, com os seus exemplos e paralelismos, com o seu humor, com a sua linguagem fácil e com o seu contagiante entusiasmo. Portanto, sim, em poucas páginas percebi que iria gostar deste livro.
Além de apresentar os problemas adjacentes à forma como vivemos, o autor também tenta desmistificar algumas verdades que temos como certas, com especial destaque para a energia nuclear que, bem vistas as coisas, até é das energias em que o custo/benefício tem uma melhor relação. Ao longo do livro cheguei a temer que o autor assumisse uma postura panfletária em relação à energia nuclear – que, como sabemos, prolifera em França – mas, sinceramente, não me parece que seja isso que o autor aqui faz. Até porque, no final, e isso é mais uma das coisas positivas do livro, o autor assume uma postura não radical em qualquer que seja a ação que toda esta reflexão pressupõe. Se calhar, virtus in medium, a virtude está no meio, como diria Aristóteles. E, como tal, em vez de reações extremistas, o mais provável, segundo Jancovici, é que precisemos alterar os comportamentos, de forma macro, sim, mas apenas pela metade.
Se Jancovici me conquistou com a sua racionalidade, factualidade e eloquência, Blain apenas confirmou o que já esperava: o seu traço livre, “cartoonesco” e pleno de dinâmica, encaixa que nem uma luva no estilo de livro que temos em mãos. O autor vai apresentando uma enorme panóplia de ferramentas gráficas diferentes, o que faz com que possamos estar diante de um desenho super simples, com fundo totalmente branco, numa página, e, na página seguinte, sermos surpreendidos por uma ilustração com belos detalhes e cores.
A somar a isto tudo, o autor também é especialmente experiente e bem sucedido com o desenho de personagens de feições exageradas, que dão o tom cómico e certo para as tiradas mais humorísticas ao longo do livro. Porque, sim, apesar de O Mundo Sem Fim ser um livro sério, que nos faz engolir em seco quando olhamos para a forma como estamos a explorar em demasia os recursos naturais do planeta, vai deixando espaço para momentos humorísticos, normalmente com recurso a situações exageradas, que possibilitam que a obra respire e alcance equilíbrio, não sendo demasiado séria e negativa, mas, mesmo assim, levando-se a sério, apesar do tom aparentemente leve.
Apesar do referido, admito que há algumas pranchas que, talvez pelo alto nível de informação técnica, apresentem algum excesso de informação, com o recurso mais a esquemas pictóricos, do que a ilustrações propriamente ditas. No entanto, isto não é muito frequente e, na maior parte das vezes, o livro acaba por funcionar muito bem em termos de desenho, também.
Quanto à edição da Ala dos Livros, estamos perante (mais) um belo trabalho. O livro apresenta capa dura brilhante, papel de primeira qualidade, e um bom trabalho a nível da encadernação e impressão. O livro inclui uma bela fita marcadora em tecido e um bom prefácio de Rui Cartaxo, professor do ISEG, que também é um especialista em banda desenhada e um amigo pessoal.
Sobre o Rui Cartaxo ou, melhor dizendo, sobre as suas palavras, permitam-me um breve comentário. Algures nas redes sociais, vi Rui Cartaxo a dizer que este O Mundo Sem Fim o impactava como Sapiens, de Harari, havia conseguido impactar. E achei curioso ter lido essas palavras de Rui Cartaxo porque, de facto, e mesmo antes disso, quando estava a ler este livro, várias vezes me veio à memória a adaptação de Sapiens para BD. Que também gostei muito! Sei que, possivelmente, Rui Cartaxo estaria a referir-se ao livro Sapiens original e não à sua adaptação para BD, mas, e ainda que assim fosse, foi uma afirmação com a qual concordo totalmente. Considero, pois, que ambos os livros são, muito provavelmente, os melhores álbuns de BD educativa publicados em Portugal. O discurso e a forma como ambas as obras estão arquitetadas são verdadeiramente impactantes. E, devido ao contributo de Blain, até me vejo forçado a considerar que, pelo menos em termos de ilustrações, O Mundo Sem Fim consegue superar Sapiens - Novela Gráfica.
Em suma, e voltando ao início do meu texto, O Mundo Sem Fim entrega tudo o que promete. E mesmo sendo verdade que eu não estava propriamente entusiasmado com o livro antes de o ler, tenho que dizer que o mesmo me conquistou da primeira à última página, numa leitura viciante. Está explicado o sucesso do livro. E é bem merecido!
NOTA FINAL (1/10):
9.3
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Mundo Sem Fim
Autores: Jean-Marc Jancovici e Christophe Blain
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 196, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Fevereiro de 2024
Bela análise Hugo. E acertaste, eu estava a referir-me ao Sapiens original. Também tenho o Sapiens em banda desenhada, aliás em 3 línguas, português, francês e espanhol, sei lá por que carga de água. Curiosamente, a Banda Desenhada ao menos o 1º volume, que tenho na minha mesinha de cabeceira, é diferente do livro, vai para além dele.
ResponderEliminarObrigado pelas palavras e testemunho, Rui. Um abraço
EliminarTalvez esta obra sirva para relançar devidamente a obra de Blain, começando por um integral do Gus, que bem merece melhor sorte que a desgraça editorial da Gradiva
ResponderEliminarConcordo que gostaria de ver mais trabalhos de Blain lançados em Portugal.
EliminarBoa análise Hugo e não posso deixar de subscrever o comentário do Anónimo (não sei porque é as pessoas não se identificam...). Blain foi muito maltratado pela Gradiva que, mais uma vez, não entendeu o que lhe caiu no colo. Alguém necessita de repõr com dignidade essa obra-mor de Blain no mercado nacional e trazer outros títulos do autor. Este titulo vai para a minha wishlist deste ano....
ResponderEliminarObrigado, António. Sim, sou da mesma opinião. Gostaria de ver Gus integralmente publicado em Portugal... tal como gostaria de ver a aposta noutros títulos de Blain.
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