Tinha grandes expectativas para este livro. Não só por Miguel Rocha ser um autor aclamado e conceituado na banda desenhada portuguesa, com várias obras que deixaram a sua pegada na 9ª Arte em Portugal, como também pelo facto de este A Rainha dos Canibais aparentar ser um projeto de grande fôlego por parte do autor.
E, sendo sincero, assim que mergulhei na leitura, comecei por ficar encantado. A proposta do autor, sendo revivalista em termos de arte visual, assumiu-se desde logo como algo bastante diferente das demais obras nacionais de BD.
A história deste A Rainha dos Canibais é ambientada em África e traça logo à partida, e inequivocamente, uma crítica direta à presença dos portugueses em África e à forma imperialista e com falta de tato com que os nossos antepassados lidaram com este tema desde o pincípio.
Acompanhamos o percurso de Bárbara, cujas circunstâncias da vida a levam para a África Colonial. Não há referências ao espaço e ao tempo concreto, mas fica bem patente que ainda se vive o auge da influência e domínio dos lusos em terras africanas. Longe da vida urbana a que estava ambientada, Bárbara vive na selva, acompanhada pelo seu marido Armando, pelo seu primo e por vários portugueses que ali estão numa espécie de missão, fortalecendo o seu poderio e supremacia sobre os habitantes locais. Entretanto, Bárbara conhece K’Merti, uma amazona negra, bem como interage com várias tribos selvagens. Mas se, para uma "donzela" portuguesa, fosse esperado que os perigos pudessem ser essas gentes selvagens, fica bem claro, à medida que vamos progredindo na leitura, que os mais perigosos serão os supostamente educados, civilizados e evoluídos. Os portugueses, claro está! Miguel Rocha não deixa margens para dúvidas na forma como, jocosamente, pinta os comportamentos do "Português Colonialista e Imperialista" que tanto marcou, quer culturalmente, quer politicamente, a África lusófona.
O desenho do autor neste A Rainha dos Canibais é verdadeiramente belo. Miguel Rocha já demonstrou, ao longo dos tempos, ser um autor que, em termos de ilustração, consegue ser muito variado e volátil, com as suas ilustrações a mudarem muito de livro para livro, o que, na minha opinião, é uma excelente valência. Aqui, apresenta-se num registo a preto e branco puro, sem espaço para cinzas, onde é quase impossível que não nos lembremos da pegada indelével do estilo de ilustração de Hugo Pratt, nas suas célebres histórias a preto e branco.
O jogo entre o branco e o preto de Miguel Rocha apresenta-se, pois, muito bom, sendo o próprio branco utilizado com bastante mestria para criar belos espaços de luz. Os pretos, por vezes utilizados em grandes manchas, servem para fazer o oposto dessas formas de luz que impregnam a história. Tudo muito bem feito. Não me lembro de uma obra portuguesa que, sem aparentar sê-lo de forma óbvia - e isto é importante - seja, em termos visuais e (um pouco, mas menos) em termos de argumento, uma melhor homenagem ao universo de Hugo Pratt do que esta A Rainha dos Canibais. E isso faz com que este seja um livro com o potencial de impactar muita gente.
A caracterização das personagens e, também, da selva, carregada de muita florestação, é verdadeiramente soberba, levando a que o leitor se sinta transportado para essa densa vegetação da África profunda. Ainda que tenha tido dificuldades, por vezes, em identificar as várias personagens da história, devo dizer que, na parte visual, este A Rainha dos Canibais me entusiasmou muito.
Todavia, e voltando ao argumento já mencionado mais acima, é mesmo nessa vertente de história que a obra fica aquém do seu (enorme) potencial. Isto porque a ideia de localizar a história em plena época do colonialismo português, apresentando toda a hipocrisia e racismo que os portugueses aí demonstraram, parece (e é) boa, mas é feita um pouco às avessas em termos narrativos.
Assim sendo, em vez de termos um fio condutor, temos um conjunto de episódios que nos vai dando as informações e as peças necessárias para acompanharmos a evolução da trama. Em termos teóricos, esta opção narrativa não tem qualquer problema e é legítima como qualquer outra, mas o meu problema com este livro - se é que lhe podemos chamar “problema” - é que, sensivelmente a meio, dei-me conta que o autor ou 1) se tinha perdido na trama por ele próprio imaginada ou 2) revelou estar a “nadar”, em termos narrativos, ao sabor da corrente. Sem um grande propósito em termos de argumento.
Obviamente, isso não tira os vários méritos que a obra tem, mas é suficiente para fazer com que a mesma perca a força que eu achei, nas primeiras páginas, que poderia vir a ter. Acaba por ser uma sensação agridoce quando terminamos a leitura… a noção de que A Rainha dos Canibais andou perto de ser um marco para a história da banda desenhada portuguesa. Sendo, ainda assim, um livro que merece ser lido e (re)conhecido, não conseguiu ser essa obra mais marcante, a meu ver.
É claro que o facto de este livro ser o primeiro tomo de dois volumes, pode fazer com que as pontas que ficam soltas após finda a leitura deste livro, acabem por ser melhor ligadas no segundo volume. Se assim for – e é o que espero - com alguns acautelamentos narrativos e com um sentido de unidade em toda a trama, que manifestamente não existiu neste primeiro volume da obra, A Rainha dos Canibais pode reclamar convenientemente o lugar que parecia seu, por direito, nas primeiras páginas deste espesso livro.
A edição d’A Seita e da Comic Heart é muito bem conseguida. Este livro, em formato horizontal (italiano) apresenta, para além de um belíssimo grafismo, uma espessa capa dura e baça e, no interior, um papel baço de boa qualidade, devidamente bem impresso e bem encadernado.
Em suma, A Rainha dos Canibais marca o regresso de um dos mais celebrados autores portugueses de banda desenhada, apresentando um belíssimo conjunto de desenhos a lembrar o melhor de Hugo Pratt. Só é pena que, entre a boa sátira à presença portuguesa nas suas colónias, a história pareça, curiosamente, perder-se a si mesma no meio da selva africana.
NOTA FINAL (1/10):
7.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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A Rainha dos Canibais
Autor: Miguel Rocha
Editoras: A Seita e Comic Heart
Páginas: 208, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 20 x 28,5 cm
Lançamento: Setembro de 2022
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