A pouco e pouco, à medida que vou lendo, um após o outro, os livros editados na mais recente coleção das Novelas Gráficas que a Levoir lançou com o jornal Público há uns meses, vou atestando - se é que dúvidas houvesse - a qualidade geral desta última coleção. Que é muito boa. Se calhar, até melhor do que outras coleções que foram mais badaladas no passado. É verdade que os nomes e obras presentes nesta última coleção, possivelmente à exceção de Chabouté (em Moby Dick), bem como de Schuiten e Peeters (em O Regresso do Capitão Nemo), não são tão célebres em Portugal. Porém, como é óbvio, isso não invalida - ou não deveria invalidar - que sejam livros muito bons. E este Uma Metamorfose Iraniana, do autor Mana Neystani, é mais um dos bons exemplos.
Parti para esta leitura com pouco ou nenhum conhecimento acerca desta obra. Quer dizer, quando a Levoir anunciou que iria lançar este álbum, fui investigar um pouco sobre o mesmo, mas mantive-me sem saber muito bem o que esperar da obra.
Uma Metamorfose Iraniana é um sentido e marcante relato biográfico onde ficamos a conhecer a história real que levou ao encarceramento do autor iraniano Mana Neystani apenas e só porque publicou um cartoon que não caiu nas boas graças de outrem. Sim, leram bem. Ainda há países onde pessoas são condenadas a penas de prisão (ou coisas piores, ainda) pela simples razão de escreverem, dizerem ou desenharem algo que vai contra as ideologias e crenças dos outros. Estamos a falar do Irão, afinal de contas.
O pesadelo de Mana Neystani começou, pois, quando numa publicação destinada aos jovens, o autor fez um cartoon em que colocava uma criança a conversar com uma barata. Essa barata utiliza a palavra “namana” que é um termo Azeri. Ora, os Azeri, são um grupo étnico de origem turca que habita no Irão. E, de alguma forma, o cartoon caiu mal a muitas pessoas Azeri, pois depreendeu-se - de forma bastante rebuscada, diria eu - que o autor estava a considerar os Azeri como baratas. E tudo isso causou um enorme tumulto e revolta do povo Azeri, que culminou numa série de mortos. Ora, com sede de encontrar um bode expiatório para toda esta convulsão social, o governo iraniano viu no cartoon de Mana a causa de todos estes problemas.
Eventualmente, por causa desta publicação - que, ainda por cima, foi feita sem qualquer motivação política ou crítica social - o autor, juntamente com o diretor do jornal, acabaram por ser chamados ao Ministério da Informação para prestar declarações. E o que eles não poderiam imaginar era que, à conta desse cartoon e desse interrogatório, acabariam presos.
A partir deste ponto, o autor dá-nos todo um retrato arrebatador de todas as privações, medos e dificuldades que passa na prisão. O relato é bastante preciso, fazendo com que o próprio leitor desta obra sinta de perto aquilo que Mana Neystani teve que experienciar na própria pele. É impossível não sentirmos compaixão pelo autor.
É longa toda a caminhada que Mana acaba por percorrer até se poder ver livre do regime iraniano - se é que esse processo chegará a estar finalizado alguma vez. Desde o primeiro encarceramento, até à passagem para uma pior prisão, as sessões de interrogatório, a conquista da liberdade condicional, a fuga para fora do país, os problemas burocráticos com inúmeras Embaixadas que optaram por não ajudar Mana Neystani… enfim, tudo nos é dado neste Uma Metamorfose Iraniana. Daí que haja uma clara e direta referência à obra A Metamorfose, de Franz Kafka, onde o peso do Estado e do establishment parecem pisar a leveza do cidadão. Do indivíduo.
E mesmo que Uma Metamorfose Iraniana acompanhe um longo e cansativo processo real, no que toca ao facto de ser um livro de banda desenhada, consegue dar-nos todas as informações necessárias, sem o fazer de uma forma exaustiva, mas de um modo que me deixou sempre atento e imerso na obra.
E algo que também gostei, foi a própria linguagem narrativa do autor. Porque, ao invés de se limitar em relatar apenas os factos, Mana dá-nos algo mais que considero precioso e que eleva a qualidade do livro: vai-nos revelando graficamente os medos e terrores que sentiu, sim, mas tentando exemplificar visualmente essas imagens acústicas que habitaram a sua mente durante o encarceramento. É por isso que, utilizando um estilo por vezes "cartoonesco", o autor consegue criar momentos alternativos e dinâmicos que permitem à história não se tornar repetitiva, mesmo que estejamos perante um livro com quase 200 páginas. Funciona muito bem.
Em termos de desenho, Mana Neystani utiliza um belo traço a preto e branco, bastante caricatural, onde as emoções vividas pelas personagens são passadas para os leitores de forma inequívoca. Apreciei bastante o estilo de tramas que acrescentam profundidade e detalhe aos desenhos. Mesmo sendo um estilo caricatural, é aquilo a que chamo um estilo “caricatural rico”.
Com as devidas distâncias, e não só no relato real como, também, nos próprios desenhos, este Uma Metamorfose Iraniana remeteu-me várias vezes para o inesquecível trabalho de Joe Sacco em obras como Palestina, ou mesmo Gorazde - Zona de Segurança, que a própria Levoir já havia publicado numa outra coleção de Novelas Gráficas.
A edição da Levoir é em linha com aquilo que a editora faz com a sua coleção de novelas gráficas, ou seja: capa dura, papel decente, boa encadernação e boa impressão. O prefácio à obra é feito por Fernando Camacho.
Em suma, Uma Metamorfose Iraniana é um marcante e, por vezes, chocante retrato de uma realidade que ainda acontece no mundo atual, em que a repressão a qualquer tipo de liberdade de expressão ainda é coisa que persiste no Irão. Agora, enquanto eu escrevo esta minha análise e os meus leitores a leem. E, especialmente por esse motivo, este livro é leitura mais que recomendada. Mesmo que, no final da leitura, fiquemos com uma sensação de desespero por ainda existirem tantos regimes políticos que parecem presos à idade das trevas.
NOTA FINAL (1/10):
8.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Uma Metamorfose Iraniana
Autor: Mana Neyestani
Editora: Levoir
Páginas: 196, a preto e branco
Encadernação: capa dura
Lançamento: Setembro de 2023
Sem comentários:
Enviar um comentário