Foi já depois de se iniciar no lançamento de mangá, com as séries Butterfly Beast e Kyo Kara Zombie, que a editora portuguesa A Seita fez uma aposta de maior fôlego, editando um dos autores mais famosos do género. Falo de Hiroshi Hirata, unanimemente considerado com um dos maiores mestres do mangá que, com este denso volume, com quase 400 páginas, da sua célebre obra O Preço da Desonra, deixa de ser inédito em Portugal!
Só por isso, esta aposta já seria, quanto a mim, uma vitória por parte d’ A Seita. Mas vai além disso. Uma coisa de que tenho vindo a apontar (sem que tal mereça que se encontre um "culpado"… it is what it is) é que o lançamento de mangá em Portugal tem incidindo muito em obras para jovens adolescentes. Nada de mal há nisso e que bom que é que esse grupo etário tenha mangá direcionado para os seus interesses. No entanto, também considero que é por essa mesma razão que o público mais maduro de banda desenhada europeia ou americana, aponte mais resistência ao mangá e a dar-lhe uma oportunidade.
Todavia, temos assistido a uma (ainda) ligeira mudança de paradigma. A Devir lançou recentemente as obras Monster, Sunny ou os contos de Junji Ito que, sem dúvida, são prova clara que o mangá também tem muita oferta destinada a um público mais maduro. De certa forma, com Butterfly Beast, A Seita também já tinha feito esse statement editorial. Mas, claro, é com este O Preço da Desonra que, estou certo e desejoso, a editora vai conquistar um certo tipo de público que normalmente não lê mangá.
Em O Preço da Desonra, um conjunto de sete contos sobre um cobrador de dívidas a samurais, não temos uma história infantil. As histórias são adultas e muitas vezes até trazem consigo uma curiosa reflexão sobre a bravura (ou ausência da mesma) daqueles a que a sociedade gosta de apelidar de valentes heróis de guerra.
O protagonista é Hanshiro que tem como função a cobrança de dívidas que foram contraídas em pleno momento da batalha através de uma nota de dívida. Quando estavam à beira da morte, muitos eram os samurais que, cegos com o medo de perder a vida, agarravam-se como podiam à mesma, implorando para que a sua existência lhes fosse poupada em troca da emissão de uma dívida. Como se estivessem a comprar a própria vida, abdicando de questões mais etéreas como a nobreza, a valentia ou a honra.
E como em qualquer sistema de crédito e cobranças que se preze, não há cá desculpas para ninguém: ou se paga o que se deve em dinheiro, ou se paga com o corpo. Neste caso, com a vida.
A acção toma lugar no Japão, no período Edo. E o que é mais agradável em termos de história é que, contrariamente àquilo que estamos habituados a ver em contos de samurais, em que estes são sempre gloriosos e honrados soldados, em O Preço da Desonra, vemos o outro lado da questão: o dos samurais corruptos, mentirosos, hipócritas e cobardes. Se querem uma opinião meramente pessoal, diria que as histórias que aqui nos são dadas por Hiroshi Hirata aproximar-se-ão muito mais da realidade do que aquela ideia romântica e fabricada de que os samurais eram todos uns valentes guerreiros. Portanto, em via oposta aos valores do Bushido, aqui as histórias tratam temas como o medo de morrer e como contornar essa fraqueza através do dinheiro.
Mas, claro, pagar-se para viver era uma decisão que, depois de tornada pública, trazia vergonha a qualquer família. E, também por isso, interessante é o facto do protagonista, Hanshiro, embora seja implacável na cobrança de dívidas, revelar algum humanismo perante as situações com que se depara na sua atividade. Quase como se ficasse com pena de ter que cobrar uma dívida. Embora o tenha que fazer, claro.
É natural que nos lembremos da emblemática Lone Wolf & Cub, de Koike e Kojima, um dos mais célebres mangás de samurais. Mesmo assim, e muito por causa desta reflexão moral sobre os valores dos samurais que a obra levanta, O Preço da Desonra é bastante original e fiel a si mesmo.
O desenho é verdadeiramente magnífico, com Hirata a revelar-se um autêntico mestre na ilustração realista das personagens, dos seus combates, dos ambientes e, acima de tudo, das poses que transmitem inequivocamente o ambiente épico e bélico que as histórias de samurais normalmente conseguem criar no nosso imaginário. O traço a preto e branco do autor apresenta alguma sujidade que, quanto a mim, dá o ambiente certo a este tipo de histórias duras e implacáveis onde a morte espreita ao virar da página. Há ilustrações que são de tirar o fôlego!
Tenho, porém, uma queixa que, infelizmente, interfere sobejamente na boa fluição da leitura: é que as figuras masculinas desenhadas por Hirata (e em mais de 90% dos casos, são homens que aparecem nestas histórias) são demasiadamente semelhantes entre si. E isso faz com que tenhamos que andar ali à pesca, à procura de um qualquer elemento diferenciador, para perceber quem é quem e quem diz ou faz o quê. Quanto a mim, é algo que me deixa bastante frustrado quando acontece em banda desenhada. Reitero que o desenho é magnífico, sim. Mas se não conseguimos diferenciar as personagens ao longo da leitura, esta sai afetada de forma negativa. Esta é a minha grande queixa acerca deste O Preço da Desonra.
Porque o que é facto é que as histórias não apresentam argumentos complexos ou com dinâmicas narrativas muito audazes, mas apresentam pontos de vista pertinentes e realidades que prendem a ação do leitor. Os desenhos são muito belos e enchem-no o olho. Mas lamentavelmente, as personagens são tão parecidas que acabamos por ficar perdidos na narrativa., que até nem é complexa.
A edição da obra apresenta capa mole, com badanas e bom papel baço, bem escolhido para o tipo de obra que temos em mãos. A encadernação e a impressão também são de boa qualidade. Embora seja um livro muito espesso, e em capa mole, depois de terminada a leitura, a lombada do meu exemplar não ficou com aquele vinco inestético que, por vezes, neste tipo de obras maiores em capa dura, acontece. No final das histórias há ainda espaço para dois posfácios: um de Hiroshi Hirata e outro de Pedro Bouça, um dos editores d’A Seita.
Portanto, concluindo, O Preço da Desonra é uma aposta ganha por parte d’ A Seita, pois traz-nos a publicação (pioneira) de um dos mestres mais bem cotados do mangá, numa bela e integral obra de samurais, completamente adequada para um público mais adulto e, diria, apreciador de banda desenhada europeia e/ou americana. É com a aposta em mangás deste gabarito e teor maduro que, estou certo, o número de leitores mais adultos vai aumentar nos próximos tempos.
NOTA FINAL (1/10):
8.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Preço da Desonra
Autor: Hiroshi Hirata
Editora: A Seita
Páginas: 396, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 15,5 x 22,6 cm
Lançamento: Agosto de 2023
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