terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Análise: Vincent e Van Gogh - Edição Integral

Vincent e Van Gogh - Edição Integral, de Gradimir Smudja - Arte de Autor

Vincent e Van Gogh - Edição Integral, de Gradimir Smudja - Arte de Autor
Vincent e Van Gogh - Edição Integral, de Gradimir Smudja

Começo por analisar este livro, lembrando uma história pessoal que vivi há uns anos. Estava num evento diplomático cultural, em que seria apresentado um filme de um eminente realizador checo. Uma autêntica vedeta do cinema europeu. E nesse evento solene, todos os convidados, que eram cerca de cinquenta, estavam vestidos a rigor: de fato e gravata. As mulheres estavam muito bem produzidas, com maquilhagem e elegantes vestidos. O ambiente, não sendo de gala, quase que o era. Entretanto, entrou na sala um homem de calções, camisa aos quadrados, já meio desbotada, sandálias e chapéu de palha. Estava ali a destoar, sem dúvida. E foi nesta altura que um amigo me disse umas palavras que me fizeram sorrir e que não mais esqueci: “Podes medir o sucesso dos teus feitos pela forma como te podes apresentar ao vivo, num evento como estes”. Fiquei então a perceber que o homem de calções e chapéu de palha era, nada mais, nada menos, do que o célebre realizador. O artista. O génio. A vedeta naquela sala. E, portanto, podia dar-se a este tipo de excessos ou caprichos de fazer o que realmente lhe apetecia.

Vincent e Van Gogh - Edição Integral, de Gradimir Smudja - Arte de Autor
E faço esta introdução para vos falar deste Vincent e Van Gogh que a Arte de Autor editou recentemente. É que, por vezes, os grandes artistas conseguem conquistar voos tão altos e apreciados por outrem que, em consequência desses mesmos feitos, também se veem a eles mesmos com a liberdade para fazer o que lhes dá na real gana. Mesmo que seja um autêntico capricho.

E, sim, Vincent e Van Gogh é um verdadeiro capricho criativo do génio da ilustração Gradimir Smutja. Para o melhor e para o pior.

Se, em termos de ilustração, o álbum é um autêntico tour de force, uma perfeita maravilha do desenho e da cor, em termos de argumento, a história é rocambolesca, inusitada e até um pouco forçada. Com respeito, mas sentido de justiça, diria que o talento de Smudja para o desenho é demasiado grande para se desperdiçar com histórias deste gabarito. E quer o primeiro tomo deste belo volume duplo, quer o segundo tomo, Vincent e Van Gogh e Três Luas, respetivamente, demonstram bem que o “argumento” imaginado por Smudja mais não é do que um engodo para que o autor possa desenhar aquilo que pretendeu desenhar.

Vincent e Van Gogh - Edição Integral, de Gradimir Smudja - Arte de Autor
A proposta de narrativa de Smudja é uma viagem pela pintura em que o enfoque é, naturalmente, a figura do pintor Van Gogh, mas que não se fica por essa homenagem. Na verdade, este é um livro carregado de homenagens ao universo dos grandes mestres da pintura, mas não só. Entra então em cena a figura de Vincent, um gato de tom alaranjado que será companhia de Van Gogh ao longo de todo o livro. Se posso conceber que a figura do gato - e especialmente por se chamar Vincent, o primeiro nome de Van Gogh - poderia ser uma clara ponte para a juventude, a traquinice e irreverência da juventude, ou do génio criativo de um artista, acho que o Smudja nunca consegui extrair esse significado da personagem por se perder, de forma desconjuntada, ao longo de todo o enredo. Chegam a existir vinhetas que nada têm a ver com a vinheta anterior. E o texto e a história, lá está, não conseguem unir a história e as suas dezenas de pontas soltas. Parece não haver um argumento previamente pensado, mas um punhado de ideias que se vão sucedendo umas às outras de forma algo anárquica. 

Vincent e Van Gogh - Edição Integral, de Gradimir Smudja - Arte de Autor
Voltando à história, e à figura do gato Vincent, Smudja propõe-nos a ideia que Van Gogh era, afinal, um artista “wannabe” que não tinha qualquer talento para a pintura. Até que conhece o gato Vincent que, destinado à genialidade, é o verdadeiro executante de todos os quadros que conhecemos de Van Gogh. E, a partir daí, o célebre pintor holandês não faz mais do que apropriar-se dos talentos do gato. Até aqui, tudo bem em termos de história. Acontece depois é que o desenvolvimento da trama apenas parece assentar nesta premissa para logo partir para uma viagem meio onírica, meio fantasiosa, com um toque de ironia e humor, mas sem estar devidamente limada ou mesmo com um fluxo natural entre os eventos que nos são dados. Há algumas tiradas satíricas divertidas, sim, mas a história não nos dá muito mais do que isso.

Não me interpretem mal. A minha insatisfação perante a história deste livro não é por ter uma história "louca". Até porque, por vezes, até é nas histórias mais "loucas" que encontramos as obras mais marcantes e geniais. Não, o meu problema tem a ver com a forma completamente aleatória da história que mais parece ter sido feita sem regras e sem lógica, só pelo prazer de a poder desenhar. E isso também é legítimo, claro.

Vincent e Van Gogh - Edição Integral, de Gradimir Smudja - Arte de Autor
Também deve ser assinalado que o autor tem méritos dentro da forma como arquiteta a história, especialmente nas milhentas referências que consegue colocar em cada um dos dois tomos, em que desfilam personagens tão diversas como Gauguin, Toulouse-Lautrec, Monet, Degas, Rembrandt, Delacroix, Brigitte Bardot, Picasso, Hitchcock, Marilyn Monroe, entre outros. Até a homenagem a Hergé, o criado de Tintin, é aqui feita. Ora, portanto, também tenho que considerar que o livro tem esse lado de exercício de hommage que o autor fez a personalidades que valoriza.

Mas, se chegados a este ponto da minha análise, os meus leitores poderão ficar com a ideia que eu não gostei nada deste livro, deixem-me contrariar essa sensação.

Se, na parte do argumento, este livro não atinge o que poderia atingir, na parte da arte ilustrativa este é, meus caros, um dos melhores livros editados durante o ano de 2023.

Vincent e Van Gogh - Edição Integral, de Gradimir Smudja - Arte de Autor
A forma como Gradimir Smudja desenha e pinta cada uma das suas vinhetas, desde a mais pequena em dimensão até à maior, é absolutamente desarmante e genial. De resto, relembro que o autor até já o tinha demonstrado no belíssimo Mausart - igualmente publicado pela Arte de Autor.

Com efeito, Vincent e Van Gogh não parece uma banda desenhada, mas sim um catálogo de um qualquer museu de arte impressionista, tal não é a qualidade e a aproximação técnica ao trabalho dos grandes Mestres da pintura europeia. Caramba, chega a ser arrepiante olhar durante longos minutos para algumas vinhetas absolutamente magnânimas que aqui podemos encontrar. 

A própria capa do livro é de uma beleza maravilhosa que torna logo apetecível o convite adjacente para mergulhar neste livro.

O virtuosismo técnico do autor, a forma como aplica as suas cores, remetem-nos, pois, e como já referi, para as obras dos grandes Mestres. E o autor não se fica por aí, pois ao utilizar e desconstruir alguns quadros célebres, não só de Van Gogh, como de outros grandes Mestres, o autor revela que desenha e pinta tão bem, ou melhor, do que os próprios mestres. Ao mesmo nível, vá. E sim, isso é uma autêntica demonstração de talento. Tivéssemos nós um argumento bem arquitetado, e este talvez pudesse ser um dos álbuns de banda desenhada da minha vida. A sensação acaba por ser agri-doce, deixando-me com sentimentos mistos.

Vincent e Van Gogh - Edição Integral, de Gradimir Smudja - Arte de Autor
A edição da Arte de Autor é verdadeiramente soberba: o livro tem capa dura baça, com textura aveludada e detalhes a verniz, enquanto que, no miolo, o papel é brilhante, de boa qualidade, com a impressão e a encadernação a serem boas, também. Acho sempre positivo que se editem estas mini-séries - ou dípticos - em volumes integrais. O primeiro volume já havia sido editado em Portugal pela extinta editora Witloof. Agora, através deste integral, que reúne os tomos Vincent e Van Gogh e Três Luas, os leitores portugueses ficam com mais uma obra integralmente publicada em Portugal. Este é mais um trabalho executado na perfeição pela Arte de Autor.

Nota ainda para a legendagem do primeiro volume que, lamentavelmente, foi uma das legendagens mais pavorosas com que me deparei recentemente. A font escolhida e as próprias legendas tornam a leitura mais difícil do que deveria ter acontecido. Como sei que a Arte de Autor não costuma ser responsável por estas más escolhas, dei-me ao trabalho de ir ver a edição original da obra e, de facto, a legendagem já aí era desajustada e mal escolhida. O que, mais uma vez, nos permite constatar, por um lado, o quão caprichosa foi esta obra e, por outro, o quão responsável e fiel é o trabalho da Arte de Autor em termos de edição. Felizmente, talvez até o autor tenha admitido que a legendagem do primeiro volume era francamente má, pois no segundo volume, Três Luas, esta muda drasticamente e deixa de ser um problema no livro.

Portanto, depois deste longo texto, em que tentei demonstrar que os pontos fortes desta obra são muito fortes, bem como os pontos fracos são muito fracos, devo dizer que, sim, este é um álbum que vou guardar com carinho na minha coleção porque acho por demais lindo de observar, ainda que a história me "dê cabo da cabeça" por ser tão rebuscadamente forçada. Estão a ver um automóvel que vos dá problemas e tem que estar sempre na oficina, mas que, apesar disso, consideram ser lindo de morrer e, portanto, acabam por mantê-lo na vossa garagem? Fazendo a analogia com a banda desenhada, é exatamente isso que Vincent e Van Gogh me faz sentir.


NOTA FINAL (1/10):
7.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Vincent e Van Gogh - Edição Integral, de Gradimir Smudja - Arte de Autor

Ficha técnica
Vincent e Van Gogh - Edição Integral
Autor: Gradimir Smudja
Editora: Arte de Autor
Páginas: 120, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Novembro de 2023

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