Foi no final de 2023 que a Ala dos Livros lançou o seu último livro do ano, que foi (e será), também, o derradeiro livro de José Ruy, esse autor imprescindível da banda desenhada nacional, cuja vasta obra influenciou tantos e tantos leitores e autores de banda desenhada no nosso Portugal.
E posso dizer-vos que ler, saborear e sentir este A Passagem Impossível é algo profundamente emocional, pois torna-se claro que estamos perante uma última forma de imersão na obra do autor, uma última forma de homenagem, uma última forma de um adeus. Um daqueles adeus que não queremos fazer, pois sabemos que representa o fim de alguém que vai deixar saudades. Alguém de quem sentiremos a falta. Assim é este A Passagem Impossível, de José Ruy. E se os bons autores se tornam eternos devido às obras que nos deixam, não tenho dúvidas de que a obra de José Ruy superará o teste do tempo.
A Passagem Impossível é um livro de grande fôlego que andava a ser preparado por José Ruy no fim da sua vida. O autor tinha mais de 90 anos e ambicionava levar a cabo este grande projeto que procura relatar a viagem do navegador português David Melgueiro que, ainda no século XVII, e a bordo do navio Padre Eterno, ousou fazer a sua viagem não pelo sul, pelo Cabo da Boa Esperança, como seria expectável, mas pelo norte, pelo estreito de Anian que, mais tarde, haveria de ser conhecido como estreito de Bering. A partir daí, a viagem transformou-se num grande épico de aventura que levou os tripulantes do Padre Eterno a enfrentarem inúmeras privações.
Se o tema é mais do que pertinente – pois aborda um assunto que é pouco ou nada conhecido – a maneira como o autor arquitetou a trama, afigura-se muito bem executada, pois, ao contrário daquilo que muitas vezes acontece em obras de cariz mais didático (onde, convenhamos, até poderemos inserir muitas das obras de José Ruy), em que há uma procura mais clara e assertiva de narrar a história de forma mais factual e educativa, sem grande preocupação com a parte mais ficcional ou com o desenvolvimento de um enredo mais complexo, em A Passagem Impossível José Ruy parece ter imaginado uma história maior em termos de trama, de narrativa e de personagens.
Talvez por isso, este seja dos maiores livros do autor em termos de dimensão, com mais de 100 páginas para uma só história. Sente-se a tentativa de almejar a sua obra-prima, por parte de José Ruy, tal como também se sente que o autor não teve problemas em imaginar uma história que tivesse a dimensão suficiente para melhor desenvolver a trama e personagens.
Além disso, também fica claro que José Ruy sabia muito bem como queria começar e como queria terminar este livro. E será mesmo por esse motivo que o autor optou por deixar as primeiras e as últimas pranchas da obra com os desenhos finalizados e passados a tinta da china. Apenas faltando dar a cor. No resto da obra, o autor só teve tempo para deixar a história em storyboard. Em esboço. E, claro, se isto pode levar alguns a acharem que A Passagem Impossível é um livro inacabado, isso não é, pelo menos quanto a mim, verdade. Sim, é óbvio que não seria desta forma que o Mestre José Ruy teria imaginado a sua obra. Não seria comercializada ainda em formato de storyboard e, provavelmente, não seria a preto e branco, mas a cores. No entanto, há que ter em conta que o livro apresenta-nos uma história com princípio, meio e fim. Bem pensada e bem arquitetada. Que pode (e deve) ser lida como livro terminado. E sem que pareça ter sido feito à pressa.
E como só foi possível ter a grande maioria da obra em storyboard, isto é, em esboços, a editora Ala dos Livros teve a coragem, a perseverança e o carinho de editar, ainda assim, este A Passagem Impossível. Era a única forma de o fazer e posso dizer que tudo está feito com um requinte, com um respeito e com um cuidado que merece todos os meus louvores. Se dúvidas pudessem existir em relação ao amor que os editores da Ala dos Livros sentem não só pela banda desenhada, enquanto arte, como, também, pelos próprios autores do género, este A Passagem Impossível é a real prova desse amor, desse respeito, dessa devoção.
E o que eu ainda acho mais fantástico neste A Passagem Impossível é o cariz didático que, de forma involuntária e não forçada, a obra acaba por adquirir. É que ler este livro também serve como forma de mergulhar no processo criativo e de trabalho do autor. A maneira como pensava e planificava a obra, a forma como desenhava os impressionantes e detalhados esboços, no storyboard, e o modo como depois aplicava a cor, através da tinta da china, em cima desses esboços. Acho verdadeiramente fantástico que este A Passagem Impossível nos mostre tudo isto. O livro funciona, pois, como uma viagem aos bastidores da criação de José Ruy. E, sendo o autor relevante que foi – e continuará a ser – quão fantástico isso é! Digo até mais: considero que este é o livro certo para aqueles que não apreciam especialmente a obra de José Ruy. Estou certo que, se derem uma oportunidade a este livro, poderão apreciar de uma outra forma, quiçá mais apetecível, o trabalho de José Ruy. E já nem vou falar naqueles que já são fãs da obra do autor: para esses, este livro é absolutamente obrigatório e merece lugar de honra na sua coleção.
Falando do objeto-livro com que a Ala dos Livros nos brinda, temos um livro em capa dura, com uma belíssima textura aveludada, e com pormenores a verniz. Bom papel, boa encadernação e boa impressão. A própria capa está muito bem pensada. Especialmente, se tivermos em conta que foi conjecturada a partir de um desenho em esboço. É verdade que na minha coleção pessoal de BD não tenho todos os livros de José Ruy, mas posso dizer que, ainda assim, tenho um número bem grande de livros do autor e nenhum deles chega perto, sequer, deste A Passagem Impossível em termos de qualidade de edição.
A edição inclui ainda um prefácio de Guilherme d' Oliveira Martins e um posfácio assinado por Maria Fernanda Pinto e Teresa Pinto, respetivamente, a esposa e filha de José Ruy. Estes dois textos permitem-nos perceber ainda melhor como a obra vinha sendo preparada pelo autor. Há ainda nove páginas com esboços das personagens e uma página tripla desdobrável que nos mostra a forma como o autor fez a planificação para esta história. Um verdadeiro mimo! E não ficamos por aqui, pois até as próprias guardas do livro são muito bonitas, aproveitando, no primeiro caso, um esboço do interior da nau Padre Eterno e, nas segundas guardas, envergando um conjunto de notas e esboços cartográficos da viagem e locais visitados nesta longa epopeia. Num número mais restrito e limitado, o livro faz-se ainda acompanhar de um print com um dos esboços do autor para esta obra. Que mais poderíamos pedir de uma edição?
Finalizando, penso ser justo afirmar-se que este A Passagem Impossível funciona como um adeus que deixa saudades de um dos maiores autores portugueses de banda desenhada. E a edição da Ala dos Livros, por tudo o que representa e pela forma como é lançada, resulta não só como a melhor edição de banda desenhada do ano, como uma das edições portuguesas de valor mais inestimável das últimas décadas. Um livro imprescindível!
NOTA FINAL (1/10):
9.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
A Passagem Impossível ou O relato da extraordinária viagem do navegador português David Melgueiro, que no século XVII, a comando de uma embarcação holandesa e tal como testemunhou o Seigneur de la Madelène ao Conde de Pontchartrain, rumou a Norte e realizou a travessia pela Passagem do Nordeste
Autor: José Ruy
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 128, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Novembro de 2023
MUITO GRATA E COMOVIDA POR ESTA ANÁLISE RELATIVAMENTE AO ÚLTIMO TRABALHO DE JOSÉ RUY, PRINCIPALMENTE POR ESTAR IMPLÍCITO, NO TEXTO, TODO O AMOR E DEDICAÇÃO QUE ELE DEDICOU TODA A VIDA A ESTA ARTE. MUITOS FORAM OS PROJETOS QUE REALIZOU, QUE DEIXARAM PARA TRÁS OUTROS QUE O APAIXONAVAM. CONTUDO, A TODO O TRABALHO QUE REALIZAVA SE DEDICAVA COM TODO O SEU ENTUSIASMO E EM TODOS A PARTE DA PESQUISA ERA A SUA PRIMEIRA PREOCUPAÇÃO.
ResponderEliminarCara Maria Pinto, muito obrigado pelas suas palavras, que prezo. Sim, não há dúvida que José Ruy se dedicava totalmente à 9ª Arte! Foi toda uma vida oferecida à banda desenhada e que cabe a agora a nós, fãs do autor e da banda desenhada, apreciar com respeito e admiração. Um abraço.
Eliminar