Já tive a oportunidade de o dizer pessoalmente ao autor e digo-o mais uma vez: quando Luís Louro concede mais seriedade às suas obras, consegue resultados que são mais impactantes para os leitores. E não desvirtuem, por favor, aquilo que quero dizer com esta afirmação. É claro que o bom humor do autor, a que todos os amantes portugueses de banda desenhada já foram habituados, é - e será sempre - bem-vindo. Mas reitero: quando a dosagem entre o bom humor e algo mais profundo é equilibrada, tal como o é neste sétimo volume de O Corvo, os resultados são mais gratificantes. Para a obra em si e para os leitores, estou certo.
Tendo lido coisas positivas sobre o mais recente número de O Corvo, que acaba de ser publicado e que dá pelo nome de O Despertar dos Esquecidos, devo dizer que parti para esta leitura com muito entusiasmo e antecipação.
Até porque, além disso, este álbum também assinala o importante marco dos 30 anos da série, tendo em conta que o primeiro volume foi originalmente editado em 1994. E é também o maior álbum, em número de páginas, até agora. Coisa que, entre outras boas decisões do autor, acaba por funcionar a favor deste novo volume.
Em termos de história, este O Despertar dos Esquecidos difere de todos os álbuns da série até agora. Sendo verdade que em O Silêncio dos Indecentes e, especialmente, em Inimigos Íntimos, o autor já tinha abordado temáticas mais sérias, tinha-o feito sempre de forma mais superficial e leve do que neste sétimo livro. Aqui, em O Despertar dos Esquecidos, o herói Corvo não é chamado a intervir em cenas de ação, em confrontos físicos, lutando contra vilões com vontade de conquistar o mundo. Não, nada disso! Esta é uma história muito mais terra-a-terra, com o Corvo a ter que lidar com vilões intangíveis com que todos nós, de uma forma ou de outra, convivemos na nossa vida: a solidão, a velhice, o esquecimento e a sensação de já não sermos necessários. Wow! Alguém o podia prever, tendo em conta que estamos a falar de um livro de O Corvo?
Desta vez, o protagonista da série – que neste álbum em concreto até nem parece ser o real protagonista - responde a um pedido de auxílio algo diferente: Alcides, o idoso pai de uma mulher completamente abalada, desapareceu e o nosso herói parte em sua busca. No seguimento da mesma, acaba por ir dar a um lar de idosos. E mesmo que não encontre por lá o objeto da sua demanda, Alcides, trava conhecimento com os castiços e divertidos residentes idosos desse lar.
Admito que o início do argumento parece avançar aos soluços, com a história a demorar um pouco (leia-se páginas) a encarrilar devidamente, mas, quando o faz, o enredo envolve-nos totalmente, fazendo com que criemos uma fácil e automática ligação afetuosa com as novas personagens que aqui deambulam.
Nota ainda para duas presenças bastante fugazes, embora relevantes. A primeira é a da Mulher do Capitão, essa bela, voluptuosa e sexy mulher por quem todos nós, leitores, temos um (forte) fraco. Sendo uma presença que ocupa poucas páginas, acaba por ser relevante para o bem disposto final do livro.
A segunda presença que aqui se faz sentir é a de Vicente – ou o Corvo quando está sem traje de herói. É verdade que a presença de Vicente neste O Despertar dos Esquecidos é bastante breve, mas devo confessar que acaba por ser um dos momentos mais marcantes do livro, pois torna-se claro, para os que melhor conhecem o Luís Louro em pessoa, que estas páginas estão carregadas de uma forte vertente biográfica onde o autor se abre, em busca, imagino, de alguma redenção. Devo dizer que engoli em seco e fiquei emotivo com esta dupla página concedida a Vicente.
Mas o livro ainda haveria de me dar mais momentos emotivos, especialmente na forma carinhosa como o Corvo escolhe engendrar um plano para ajudar os idosos a escaparem do seu quotidiano repetitivo e sensaborão. O que me leva mesmo à questão de que, futuramente, não sei se não preferia ver a personagem do Corvo a digladiar-se com este tipo de problemas, mais reais, em detrimento dos habituais e mais clássicos "vilões" que ameaçam o mundo em que vivemos. Esta vertente mais humana de O Corvo é, em tudo, mais bem-vinda porque, mesmo sendo uma história que agradará aos clássicos fãs da série, vai um pouco além disso, sendo mais madura.
Mas, com tanta emotividade, será este um álbum piegas onde o humor não está presente? Nem pensar! Continua a ser um livro carregado de humor, com diversas tiradas divertidas, trocadilhos e situações caricatas. Além das habituais referências que pululam ao longo das ilustrações. Sendo uma história agridoce, pois faz-nos ficar tristes e divertidos ao mesmo tempo, continuo a considerá-la como passível de ser inserida na categoria de humor. Mesmo que também possa admitir que essa categoria será redutora para classificar este O Despertar dos Esquecidos.
Voltando ao humor aqui presente, também neste ponto Luís Louro acaba por ser mais feliz do que em álbuns anteriores. E a causa é simples e está no método que o autor aqui utiliza. É que, instrumentalizando cada um dos idosos do lar enquanto móbil para a colocação de larachas e comentários indecorosos, esse humor presente na sua postura de “já se estar por tudo” na vida e dizer-se o que se pensa, sem filtros, parece muito mais natural e menos construído do que em álbuns passados. Sei que a questão de humor, entre muitas outras, é das mais subjetivas que existe e, por isso, digo-o baseando-me, naturalmente, nos meus gostos pessoais: as piadas e disparates, por vezes brejeiros, ditos por idosos, funcionam muito melhor do que as que são ditas pelo Corvo. E, portanto, até nesse cômputo, este O Despertar dos Esquecidos é um dos livros mais divertidos de toda a saga de O Corvo. O que sublinha a ideia com que fiquei que, neste sétimo livro, praticamente tudo saiu bem a Luís Louro.
Em termos de desenho, o autor continua dono e senhor de si mesmo, com um trabalho imaculado em termos de traço e cores. O seu desenho está verdadeiramente dinâmico e cada vez mais confiante. Para não repetir o mesmo, por outras palavras, repesco aquilo que já escrevi face ao desenho do autor no último Corvo: “considero que Luís Louro se mantém no topo das suas capacidades. Se os seus desenhos angulosos estão mais confiantes do que nunca, é nas cores que o trabalho de Louro mais me deixa boquiaberto. Esse que até costuma ser o calcanhar de Aquiles em tanta da banda desenhada nacional – não se diz muito isto, mas é a mais pura das verdades – acaba por ser uma das principais qualidades nos álbuns mais recentes de Luís Louro. As cores são lindas e flashy, fazendo com que sejam um deleite para os olhos. Os desenhos são belos, claro, (…) e com um traço muito característico, sim. Mas estas cores também têm uma importante quota parte no facto de os livros de Luís Louro terem um aspeto tão moderno, tão bem executado e, arrisco mesmo, tão “exportável” para outros mercados estrangeiros. Nota ainda para as brilhantes ilustrações que ocupam uma ou duas páginas, onde o autor revela um dinamismo visual muito acima da média.”
Por falar nos belos desenhos de página dupla, permitam-me deixar bem claro que a página dupla em que, neste O Despertar dos Esquecidos, vemos o Corvo e os seus novos amigos a olhar para o desordenado voo dos pombos lisboetas perante uma luz alaranjada pautada por um sol nascente, é possivelmente a melhor ilustração que Luís Louro concedeu para o seu/nosso Corvo. Não só por ser uma ilustração belíssima em termos visuais, como por encerrar uma beleza, um significado, uma poesia e uma leveza difíceis de reproduzir em banda desenhada. Por muito que eu adore as mulheres angulosas e sexys que Luís Louro ilustra – e, acreditem, adoro-as! – acho que, se eu pudesse escolher a ilustração perfeita do autor para emoldurar e pendurar na minha casa, seria esta mesma! Até porque, convenhamos, os desenhos com mulheres voluptuosas, poderiam ser imagens demasiado ariscas para expor numa casa com crianças abaixo dos 9 anos.
Por falar nesta ilustração, foi mesmo ela que foi incluída, enquanto print bónus de oferta, para as primeiras compras do livro. Que sorte! De resto, olhando para a edição que a Ala dos Livros nos dá neste livro, temos que dizer que, mais uma vez, estamos perante um belíssimo trabalho. O livro apresenta capa dura brilhante, com bom papel brilhante no miolo e uma boa encadernação e impressão. Além disso, e também porque, relembro, se trata de uma edição que procura ser comemorativa dos 30 anos de O Corvo, o livro traz 15 páginas de extras onde os leitores e admiradores da série puderam contribuir com criativas homenagens fotográficas ao Corvo e onde são colocadas citações de imprensa e sites a propósito dos vários lançamentos da série ao longo dos últimos 30 anos. Há ainda um belo prefácio feito por Francisco Lyon de Castro e uma mais dispensável conversa de SMS entre Nuno Mata e Luís Louro. Acaba por ser uma boa edição para coroar os 30 anos de uma série tão emblemática da banda desenhada portuguesa. Até porque, não esqueçamos, não é todos os dias que uma qualquer série de BD de origem portuguesa tem uma longevidade tão grande.
Em suma, O Corvo parece ter alcançado a sua maioridade aos 30 anos, com este O Despertar dos Esquecidos a ser o melhor álbum da série até agora. E isso verifica-se por Luís Louro ter conseguido dosear bem os vários momentos da trama e, ao mesmo tempo, transpor a personagem principal de O Corvo para uma luta, quiçá mais relevante e verossímil, por aqueles que, possivelmente, chamariam de herói ao primeiro que, atravessando-se no seu caminho, tivesse a galhardia e humanidade de passar algum do seu tempo com eles. É tudo isso que, afinal de contas, faz despertar todos aqueles que se mantêm esquecidos por esse país fora. Belíssimo livro!
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Corvo #VII - O Despertar dos Esquecidos
Autor: Luís Louro
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Abril de 2024
Os dois primeiros álbuns do Corvo já se apresentavam com um humor muito negro e muito trágico até. O final do segundo é um momento pé no chão que até dói e possivelmente o ponto mais alto da personagem.
ResponderEliminarDepois a coisa nunca mais voltou a esse nível.
Sim, concordo que, especialmente o segundo livro, tem um final que fica a ecoar já bem depois de finda a leitura.
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