A personagem O Corvo – o super-herói mais famoso de Portugal – até pode ter estado adormecida por muitos anos. Mas agora, e desde que Luís Louro, o seu autor, voltou a pegar neste nome icónico da banda desenhada portuguesa, tendo lançado o quarto volume de O Corvo no ano passado, - enquanto trocava a sua longa duração com a editora ASA por uma nova e refrescante relação com a Ala dos Livros -, parece que O Corvo nunca esteve tão vivo! Passado um ano, aqui está uma nova aventura e é bem possível que novas aventuras vão acontecendo anualmente(?), a partir de agora. Assim espero, pelo menos!
Neste O Corvo – Inimigos Íntimos sente-se um claro esforço do autor em dar-nos algo diferente, quiçá com mais conteúdo, em termos de argumento. Seria, certamente, fácil ir buscar um vilão de outros livros ou apresentar-nos um novo "mauzão" mas Louro faz mais do que isso. E não é que não existam vilões em Inimigos Íntimos. Mas, e como o próprio nome indica, o maior vilão desta história não poderia ser mais íntimo do que o próprio Corvo, ou Vicente, o homem por detrás da máscara. A própria capa do livro - muito bem conseguida, diga-se - já fazia prever que talvez o enfoque da obra fosse Vicente em detrimento d' O Corvo. Embora, convenhamos, cada um deles precise do outro para existir.
Nesse sentido, e com originalidade e sentido de oportunidade, o autor mergulha-nos na mente de Vicente e nos seus dramas do passado, da infância, para melhor compreendermos certos comportamentos e posturas do super-herói. Afinal de contas, todos nós somos o produto das nossas vivências, certo? Assim, tendo uma conversa com uma muito voluptuosa psicóloga – poderia ser de outra forma? – Vicente vai mergulhando no seu passado, fazendo-nos várias revelações. E, quando no capítulo 3, somos presenteados com um flashback até à infância de Vicente, as coisas tornam-se subitamente sérias, com os episódios de perseguição e assédio moral e sexual – vulgo, bullying – de que a personagem foi vítima.
Mas se somos presenteados com uma abordagem mais madura e séria em termos de argumento, a verdade é que em quase cada uma das páginas há uma qualquer piada, uma qualquer sátira ao mundo atual em que vivemos, que logo nos lembra que este é, apesar de tudo, um livro d’ O Corvo e que haverá sempre espaço para uma tirada cómica. E, seja na forma como subverte o chavão clássico das histórias de super-heróis; seja como brinca com o papel de um narrador numa história; seja como ridiculariza a corrente de pensamento do politicamente correto, que tantos millennials parecem seguir nos tempos que correm; seja na forma como faz Corvo punir aqueles que falam mal a língua de Camões, Louro é mordaz na forma como faz humor. E é difícil não ficarmos com um sorriso na cara - e por vezes chegarmos à gargalhada - enquanto lemos este livro.
Depois dessa partilha de passado traumatizante, Luís Louro troca-nos as voltas com um plot twist que volta a trazer humor e sagacidade para a história.
A meu ver, apenas me parece que o final do livro poderia ter sido mais bem conseguido pelo autor. A história fica "fechada" mas demasiado "em aberto". Quase diria que parece a primeira parte de um álbum duplo. E, se calhar, até estou profundamente enganado e o próximo livro nem sequer pegará na história no exato momento em que este 5º volume a termina. Mas, seja como for, parece-me que o autor levanta com muita pertinência um véu que não havia sido explorado até agora na série mas que, de alguma forma, poderia ser mais bem espremido em termos de argumento. Por outras palavras, à medida que ia lendo a obra comecei a achei que este era o melhor argumento do Corvo mas, depois, no final, senti que sabia a pouco. Que a história estava incompleta ou, pelo menos, mal aproveitada. Ainda assim, insisto que o argumento, tirando esta questão, me agradou muito e me deixou preso à história.
Em termos de arte ilustrativa, Luís Louro parece caminhar sempre de forma ascendente em termos qualitativos. É óbvio que o seu estilo, que todos conhecemos, se mantém presente. As ilustrações mantêm-se bastante angulosas, as poses do herói Corvo continuam exuberantes e humorísticas, as mulheres de ancas largas e seios fartos continuam a marcar presença e a planificação das páginas continua dinâmica. Mas, além disso, e como dizia, a técnica do autor parece-me cada vez melhor. O desenho está cada vez mais confiante no traço e vê-se que Luís Louro domina cada vez mais a componente digital nos seus desenhos, o que nos oferece cores vistosas, bons jogos de luz e sombra e uma inteligente e bem executada utilização de texturas que dão profundidade às ilustrações, melhorando-as. Em termos de ilustração, este é um fantástico trabalho e é até bem capaz de ser um dos melhores álbuns - senão o melhor - do autor, quanto a mim.
Relativamente à edição, estamos perante mais um bom trabalho da Ala dos Livros. A capa é dura e brilhante, o papel (também brilhante) tem boa qualidade e a encadernação e a impressão estão muito bem feitas, também. E há também extras que merecem destaque: o prefácio – algo académico demais para os meus gostos, confesso – de João R. Marques; as duas páginas com esboços do autor, uma receita de culinária para as chamuças do Corvo; e 3 páginas dedicadas a fan art, em que são mostradas 15 ilustrações do Corvo feitas por alguns nomes bem conhecidos da banda desenhada nacional. Estava esperançoso que a ilustração que a minha filha de 6 anos fez, pudesse figurar nesta galeria. Mas, infelizmente, tal não aconteceu.
Voltando ao assunto das chamuças, cada álbum traz um vale que dá direito a uma chamuça no bar do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja. Sendo (mais) uma iniciativa do autor e editor, que revela o bom espírito de humor que habita toda esta equipa, acaba por funcionar como mais uma forma de estreitar o laço entre autor, editora e leitor. E isso é fantástico – goste-se ou não de chamuças!
A Ala dos Livros tem-se tornado rapidamente numa editora muito ativa no chamado marketing de guerrilha em que, muitas vezes, faz coisas fora do expetável, para chamar a atenção dos leitores. E eu não poderia valorizar mais essa vontade! Porque, afinal de contas, é giro não saber qual será a ideia seguinte da editora. Em O Burlão nas Índias publicaram uma edição especial que incluía uma tela; em Alice – Edição Especial 25 anos, de Luís Louro, fizeram uma das edições mais fantásticas de bd nacional de sempre, e em Os Covidiotas – também de Luís Louro - enviaram um pedaço de papel higiénico aos leitores que compravam o livro. Enfim, apenas alguns exemplos de ideias criativas e "fora da caixa" da editora. Desejo sinceramente que a criatividade e audácia continue presente nesta editora!
Em suma, este O Corvo V - Inimigos Íntimos traz-nos um Luís Louro muito inspirado, quer nas piadas – quase sempre muito divertidas – com que nos brinda, quer na capacidade técnica, em termos de execução das ilustrações e aplicação de cores, que está cada vez mais apurada. Se o quarto volume tinha sido interessante, este quinto volume é ainda melhor!
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Corvo V - Inimigos Íntimos
Autor: Luís Louro
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Agosto de 2021
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