terça-feira, 27 de setembro de 2022

Análise: Juventude


Juventude, de Marco Mendes

Hoje já vos falei da fantástica iniciativa, em prol da banda desenhada portuguesa, que a A Seita tem vindo a fazer durante este ano e que utiliza, de forma inteligente e com sentido de oportunidade, os fundos públicos para uma aposta significativa no lançamento, não só de novos livros de banda desenhada, mas, também, de livros que versam sobre o tema.

Juventude, de Marco Mendes, é um dos lançamentos ao abrigo desta iniciativa. E que obra singular e de uma enorme força narrativa ela é! E tudo isto, sem usar uma única palavra.

Sim, se o chavão “uma imagem vale mais que mil palavras” tem sido usado e abusado por muitos, é-me quase impossível não resgatar essa expressão para falar deste Juventude.

Isto porque, sendo uma banda desenhada muda, não utiliza qualquer legenda ou balão para nos passar texto algum. Mas - claro! – há toda uma história, uma experiência, uma vivência que nos é contada através de imagens que, mesmo não tendo uma sequência tão direta assim entre si – e voltarei a este ponto mais à frente – nos conta uma bela história. Familiar a todos nós, que já passámos por uma juventude, mas, ainda assim, suficientemente original e sem cair nos lugares comuns.

Aprecio particularmente quando um autor se predispõe a tentar algo novo e diferente, que tenha a audácia de tentar abordagens diferentes. Juventude é tudo isso para Marco Mendes.

Uma coisa de que, particularmente na análise a esta obra, eu não queria fazer, era falar-vos muito da história que Marco Mendes nos apresenta neste livro. É que, sendo muda, parte do argumento que nos é dado, e que assenta num retrato autobiográfico do autor, é construído por nós mesmos através da interpretação que fazemos das ilustrações. 

É óbvio que há um fio condutor, que nos remete para a vida de um adolescente e as suas vivências, como o primeiro amor, a mudança para outra localidade para prosseguir os estudos na pintura, as saídas com os amigos, as viagens de retorno à terra, para aí encontrar tristes notícias do foro de saúde… tudo está bastante percetível. No entanto, o autor procura não ser óbvio e não fazer a “papinha” toda ao leitor. Desta forma, há certos elementos na narrativa que, possivelmente, cada leitor interpretará à sua maneira e com base nas suas próprias vivências.

Um exercício que considero muito pertinente para lançar a reflexão da interpretação daquilo que vemos à nossa frente. Fez-me até pensar que gostaria de ver quatro ou cinco argumentistas portugueses a colocarem o texto nesta imagem. Provavelmente teríamos histórias diametralmente opostas entre si.

Mas, se até aqui me tenho focado na história e na narrativa de Juventude, convém revelar aquele que será, talvez, o seu maior trunfo: o fantástico conjunto de belíssimas e impactantes ilustrações com que o autor dota a sua obra. Na verdade, num registo que lembra a pintura clássica, Marco Mendes dá-nos uma obra incomparável a qualquer outra. São mais de 100 ilustrações, mas a verdade é que poderiam ser mais de 100 quadros expostos num museu, tal não é a sua força visual, onde fica patente, de forma inequívoca, a capacidade assombrosa do autor para ilustrar através de pinceladas. Marco Mendes demonstra, aliás, ser um autêntico virtuoso da pintura. E, ao ter optado por deixar a sua história sem diálogos, acabou por chamar ainda mais a atenção para as suas magníficas ilustrações. Um autêntico deleite para os olhos!

Se há algo de que me posso queixar neste Juventude – e, na verdade, não se trata bem de uma “queixa”, mas sim da constatação de um facto – é que, em termos de sequência, propriamente dita, acho que o livro não consegue funcionar a 100%. É óbvio que há uma sequência na história e que a mesma se percebe muito bem. Disso não tenho dúvidas. 

No entanto, considero que sendo a banda desenhada uma arte sequencial, onde cada ação parece dividida por vários frames - leia-se vinhetas -, Juventude acaba por parece mais um livro ilustrado mudo do que uma banda desenhada muda, conforme tem sido anunciada. Nada contra e nada de mal nisso, ressalvo. Mas para que houvesse uma maior sequência entre imagens, talvez fosse necessário um maior conjunto de ilustrações para as várias vivências do protagonista. Exemplifico: na cena em que a personagem chega àquela que parece ser uma residência universitária e acaba por ser surpreendido pelos amigos que lhe pregam uma partida, há uma clara sequência narrativa. Porém, na restante obra os momentos são-nos entregues de forma mais avulsa, não havendo espaço para estas sequências mais interligadas entre si. Tal como se cada imagem funcionasse mais como um vislumbre de um determinado momento, para nos dar uma pista de compreensão da história do que, propriamente, para nos dar um acontecimento sequencial.

Não é defeito. É feitio. Uma escolha do autor. Não belisca em nada a qualidade inegável da obra e o gozo que me deu lê-la. É apenas algo que considero que, feito de outra forma, ainda teria elevado mais a qualidade da obra.

A edição d’A Seita, em conjunto com a Turbina, está muito bem conseguida. A obra é em formato horizontal (comummente chamado de “formato italiano”). Não aprecio especialmente este formato, mas acho que, em alguns casos, funciona bastante bem. E Juventude é um desses casos. Dada a mudez da obra e a cinematografia inerente à mesma, parece-me ter sido uma boa opção.

De resto, o livro é em capa dura, em tecido, com papel baço de boa qualidade. Boa impressão e boa encadernação, também. As editoras tiveram ainda a boa ideia de lançar o livro com três versões de sobrecapas: a portuguesa, a inglesa e a francesa. Parece-me uma ideia original e uma forma simples, económica e inteligente de, tendo em conta que o livro não tem texto, conseguir fácil e eficazmente ter versões prontas para os mercados estrangeiros.

Em suma, este é um livro lindíssimo, da primeira à última página e, mais importante que isso, quiçá, é uma obra original, singular no trato, e onde Marco Mendes dá mais um passo na sua afirmação enquanto autor - se é que isso ainda é necessário - ao mesmo tempo que nos convida para um audaz exercício: e se fôssemos nós o co-argumentista do seu próprio livro?


NOTA FINAL (1/10):
9.2



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Ficha técnica
Juventude
Autor: Marco Mendes
Editoras: A Seita e Turbina
Páginas: 116, a cores
Encadernação: Capa dura (mais sobrecapa)
Formato: 23,5 x 27,5 cm
Lançamento: Junho de 2022

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