A Arte de Autor publicou recentemente aquele que é o terceiro tomo da saga Bug, da autoria de Enki Bilal. Sendo um autor consagrado, do qual retenho obras revelantes como Júlia & Roem, Animal'z ou, especialmente, a Trilogia Nikopol, ainda não tinha tido a oportunidade de ler nenhum volume desta série Bug que já conta com três livros editados. Portanto, resolvi lê-los a todos, de uma assentada, e assim opinar sobre esta saga que tem ocupado os últimos anos de criação de Bilal. A série estava pensada para ter apenas quatro álbuns, mas parece que agora há uma incógnita no ar quanto a isso e, portanto, é possível que a série venha a ser maior.
Por enquanto, olhamos para estes primeiros três volumes de Bug.
Esta é uma série de ficção científica, ambientada num futuro - não tão longínquo assim -, em modo de distopia, bem ao jeito de um George Orwell ou de um Aldous Huxley. O ano de arranque da história é 2041 e o marco que se vive então é um bug informático generalizado que paralisa o mundo, tal como o conhecemos, ao esvaziar os conteúdos – toda a informação disponível, entenda-se – de toda a rede informática mundial.
Num mundo cada vez mais dependente da tecnologia, este bug torna-se nefasto, pois consegue paralisar todo o tipo de serviços, a começar pela eletricidade e pelos mais variados serviços dos quais dependemos. Mesmo que nem demos conta disso. E, claro, a memória do cérebro humano volta a ser preponderante já que, com o passar dos anos, os humanos se habituaram a não exercitá-la porque era muito mais fácil guardar as informações e o conhecimento através da tecnologia. Talvez por isso, sejam os velhos as fontes de maior informação pois, de alguma forma, ainda se habituaram a usar o cérebro por não serem tão dependentes das tecnologias.
É então que nos surge o protagonista da saga. No exato momento em que ocorre este bug generalizado, Kameron Obb encontra-se numa expedição na órbita terrestre que acaba em catástrofe, com a morte de todos os tripulantes, exceto o próprio Kameron Obb. Estarão os dois eventos correlacionados?
Embora seja um sobrevivente de regresso à Terra, Obb parece ter apanhado algum tipo de bug (um bicho? uma doença?) que lhe causa o aparecimento de uma mancha azul na cara, que se vai alastrando. Mas o mais estranho nesta personagem – e aquilo que o vai tornar o homem mais procurado do mundo – é que, aparentemente, este homem obteve e registou toda a informação do mundo no seu cérebro. Aquela que desapareceu de todos os equipamentos tecnológicos.
Portanto, como já devem estar a calcular, todos os países, grupos e facões tentarão trazer Obb para o seu lado. A bem ou a mal. E como ele tem uma filha, Gemma, todos aqueles que estão interessados nas capacidades cerebrais de Obb não terão pruridos em usar a sua enquanto engodo para o fazerem aparecer. E será neste ponto que reside o cerne da ação, em jeito de thriller, que envolve esta história. A que se juntam alguns plot twists que tornam a narrativa rápida, por vezes.
Com o caos instalado à conta deste bug, a sociedade começa, portanto, a anarquizar-se, com grandes vagas de suicídios, com pilhagens de todo o tipo de produtos e alimentos e num clima geral de insegurança. Surgem também movimentos políticos, ideologias e grupos criminosos extremistas que tentam ganhar força e apoiantes. Bilal vai-nos mostrando alguns dos acontecimentos que vão surgindo através das páginas do jornal Le Monde Today que opta por escrever com erros ortográficos.
Acaba por ser óbvio que, em Bug, Enki Bilal aponta críticas à sociedade atual. Não estaremos num mundo tão mau como o de Bug, diria eu, mas, lá está, podemos estar numa fase embrionária para um mundo assim. E, por essa razão, parece-me que o cenário e ambiente criado pelo autor para esta história está bastante pertinente e bem conseguido.
Sendo certo que o primeiro livro me deixou muito empolgado com toda a premissa que Bilal tinha fabricado, devo confessar que algum do meu entusiasmo foi dando lugar a algum tédio, causado por – quer-me parecer - uma tentativa do autor em alongar, ou atrasar, em demasia o natural desenvolvimento da história.
Com efeito, o enredo vai-se centrando cada vez mais em Obb e Gemma e parece que o mundo e as implicações do tal bug – que são a grande mais-valia da série - passam a ficar esquecidas por parte do autor, com este a centrar-se mais em colocar a personagem de Obb em contantes viagens de Paris para Barcelona para encontrar a sua filha. Não diria que a série esteja “estragada”, nem nada que se pareça, mas diria que vai perdendo, gradualmente, força narrativa. Não obstante, e tendo em conta que estamos perante uma série ainda em aberto, nada está perdido e Bug pode ainda reclamar para si todo o potencial que o seu primeiro tomo nos deu. Basta que a história se foque no mais relevante daqui para a frente.
Mas falar dos livros de Bilal não é apenas falar nas suas histórias. A arte ilustrativa do autor continua verdadeiramente uma obra de arte! O seu signature style é tão único que nos basta um vislumbre de um segundo de uma qualquer vinheta, para sabermos que se trata de um Bilal. O domínio da técnica do lápis de carvão e o domínio das belas cores frias que impregnam as imagens de uma beleza especial, continuam presentes na obra do autor. A utilização de belos planos cinematográficos ou a própria imagética idealizada e concretizada pelo autor, é de uma singularidade gritante. Não será, por ventura, um estilo de desenho que agrade a todos mas acho que todos temos que concordar que a técnica do autor é única e demais virtuosa.
No entanto, na minha opinião, nem tudo são rosas na arte ilustrativa de Bug.
Em primeiro lugar, e isto não é de agora, há algo que tenho que realçar sempre que falo dos desenhos do autor: as mulheres continuam a apresentar demasiadas semelhanças visuais entre si. E tanto assim é, que perdi a conta ao número de vezes que me senti perdido por não saber que personagem era qual. O que, por muito que eu adore os desenhos do autor, se torna uma fraqueza para a leitura fluída do livro. Quando há uma cor de cabelo diferente entre as personagens femininas, ainda é fácil perceber quem é quem. Agora, quando as mulheres apresentam cortes de cabelo semelhantes, roupas semelhantes e são desenhadas de forma tão próxima… torna-se uma fraqueza na obra de Bilal. Não sei como é que ninguém próximo do autor ou avisa desta situação. É uma pena.
Outra coisa menos positiva que também detetei neste Bug, é que o autor está a usar e a abusar de grandes vinhetas – com grandes planos das personagens - que, conforme já referi, também ajudam a que se gere a sensação de arrastamento da trama. Deixem-me explicar melhor: não é que eu não aprecie os fabulosos desenhos do autor em grande dimensão. Se são belos até é bom que os possamos observar em tamanho maior. Porém, a utilização desenfreada de grandes vinhetas em dimensão, onde se passa pouco do ponto de vista da narração visual, faz com que fiquemos com uma certa sensação de “enchimento de chouriços”.
Seja como for, não posso deixar de admitir que as ilustrações do autor são maravilhosas e que merecem que nos demoremos alguns momentos nelas.
Olhando para a edição da Arte de Autor, está tudo muito bem feito. Os livros têm uma bela encadernação e impressão, com capa dura baça e com bom papel - e com a quantidade certa de brilho. No final não há dossier de extras, mas há uma página com a bibliografia portuguesa do autor Bilal em Portugal. Não é algo que seja muito comum de fazer por cá – até por causa de todas as rivalidades e concorrências editoriais – mas é algo que considero bastante positivo para os leitores que procuram saber mais acerca daquilo que foi editado por cá.
Em suma, Bug é uma bela proposta para fãs de Bilal e para adeptos da ficção científica. Tem uma trama bem pensada por parte do autor, que traz consigo um conjunto de críticas à forma como estamos a viver e de como estamos a construir o nosso amanhã.
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Bug: Livro 1
Autor: Enki Bilal
Editora: Arte de Autor
Páginas: 88, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 234 x 312 cm
Lançamento: Abril de 2018
Autor: Enki Bilal
Editora: Arte de Autor
Páginas: 76, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 234 x 312 cm
Lançamento: Outubro de 2019
Autor: Enki Bilal
Editora: Arte de Autor
Páginas: 88, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 234 x 312 cm
Lançamento: Agosto de 2022
No geral, concordo com a excelente análise da trilogia "BUG" do consagrado autor Bilal mas não totalmente no que toca ao abuso das grandes vinhetas pois acho que isso é precisamente uma das "mais-valias" de Bilal, o presentear-nos com esses grandes planos quase cinematográficos, é e sempre foi muito característico dele. No que toca ao aspeto fisionómico das figuras femininas, concordo que essa é uma deficiência, embora ligeira e recorrente, do estilo de desenho de Bilal.E, no restante, concordo, como já referi, com todos os aspetos referidos de forma objetiva e equilibrada bem como a classificação atribuída. Boas leituras!
ResponderEliminarCaro Carlos, muito obrigado pelo seu simpático comentário. Pois, eu sei que a utilização das grandes vinhetas é uma característica inerente da obra de Bilal. Não obstante, pareceu-me que, em "Bug", o autor ainda abusou mais dessa utilização. Mas, claro, compreendo e aceito perfeitamente o que diz. Boas leituras!
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