Se houve coisas que a Devir fez nos últimos meses (e anos!) que muito me agradaram, o lançamento deste Como Antes, de Alfred, foi uma das coisas que mais me deixou feliz!
Em termos de lançamento de banda desenhada, a estratégia da editora nos últimos anos tem revelado um maior enfoque na edição de mangás, onde a Devir tem tido um constante e assíduo lançamento de novos números das séries que vai editando. Infelizmente, para os meus gostos, pelo menos, a editora tem deixado de parte a aposta numa banda desenhada de cariz mais europeu, por um lado, e direcionada para um público mais maduro, pelo outro.
Mas com Como Antes, devo dizer que a editora acerta em grande nessas duas vertentes! Esta é uma obra para adultos e de um autor europeu (neste caso francês) que assina apenas como "Alfred".
Já conhecia relativamente bem o autor tendo, inclusive, analisado a sua obra Senso, que me agradou bastante. Mas Como Antes, é a sua obra mais famosa, tendo mesmo vencido o Fauve d’Or do Festival de Angoulême, em 2014. E percebe-se bem porquê.
Esta é uma história simples, humana e que nos mostra duas vertentes: tudo aquilo que, devido às nossas escolhas e atitudes, nos vai afastando dos nossos familiares mais próximos; mas, também, tudo aquilo que, aconteça o que acontecer, nos aproxima, nos toca, nos enlaça com esses mesmos familiares próximos. E, por muito que duas pessoas se afastem e se considerem opostas uma à outra, nas mais diversas características, a verdade é que, pondo de lado a animosidade de acontecimentos negativos do passado, essas mesmas duas pessoas terão mais em comum do que aquilo que julgariam.
Como Antes faz lembrar um daqueles road movies, que nos vai contando a história e mostrando as personagens, à medida que as mesmas encetam uma viagem de carro. Neste caso, estamos no início dos anos 60 e acompanhamos a viagem, num Fiat 500, de Fabio e Giovanni, que os levará de França à sua terra natal, no sul de Itália. Fabio, que para arranjar uns trocos se tornou boxeur, não queria, por nada, fazer esta viagem, mas quando o irmão, Giovanni, lhe diz que transporta as cinzas do pai no banco de trás do carro, Fabio lá acaba por ceder.
Mesmo assim, esta é uma viagem que, tendo em conta o enorme afastamento temporal de ambas as personagens, não começa muito bem. São muitas as discussões acesas, as discordâncias e os silêncios incómodos que começam por pautar o início da viagem dos irmãos. No cerne do grande afastamento entre eles está o momento em que, há 10 anos, Fabio abandonou a sua família por opção e por causas políticas, pois vivia-se ainda o período da Itália fascista.
Ao longo da viagem, que passa por belas paisagens campestres, vamos, também nós, conhecendo melhor as personagens e aquilo que lhes aconteceu, enquanto que, de vez em quando, nos são dados, de forma entrecortada, alguns flashbacks do passado, que têm um estilo de desenho e uma palete de cores diferente da narrativa principal. Ao início, estes desenhos mais alternativos parecem algo difusos e aleatórios, mas, lá mais para o meio e fim da obra, vamos percebendo melhor as pinceladas de conteúdo que estas ilustrações mais abstratas atribuem a toda a história que nos é contada.
Sem desvendar nada acerca da maneira como acaba este Como Antes, há que dizer que Alfred se revela como um excelente contador de histórias. Porque sabe guardar bem algumas surpresas para o fim da leitura, não abrindo mão dos seus trunfos narrativos, até que o livro chegue às últimas páginas. E talvez, também, por isso, este Como Antes seja especial.
Até posso admitir que a história – pelo menos na primeira parte do livro – até não seja assim tão original. Parece que já vimos ou lemos histórias semelhantes a esta. Todavia, a maneira como o autor resolve a história, bem como o conjunto de surpresas que nos deixa para o fim, tornam Como Antes mais especial e singular do que aquilo que, inicialmente, pode parecer.
Em termos de ilustrações, esta é uma obra que me agradou bastante. Sim, é verdade que o traço do autor não aparenta (logo) ser de um detalhe ou de um virtuosismo inquestionável. Certo tratamento das personagens e suas expressões faciais também não revelam um cuidado muito elevado. Contudo, considero o estilo de ilustração certo e adequado para a história que temos em mãos.
E, à medida que vamos avançando na leitura, e vendo todas as paisagens bucólicas que circundam o Fiat 500 dos dois irmãos, ou que vamos voltando atrás no tempo, através de flashbacks, para visualizarmos um estilo de desenho de linhas mais estilizadas; as ilustrações do autor começam a entranhar-se e, quando terminamos a leitura, estamos encantados. Eu, pelo menos, fiquei.
Já para não falar das belíssimas cores, cuja paleta vai divergindo ao longo da viagem, e que permitem à obra uma boa e contida beleza visual.
A edição da Devir está bastante boa: capa dura, bom papel baço e uma boa encadernação e impressão. Nada de mal a objetar.
Em suma, este é mais um dos livros do ano, asseguro-vos. É de lamentar mas, por vezes, este tipo de obras, cujo desenho pode não impressionar assim tanto à primeira vista, passa pelos pingos da chuva em termos comerciais. No caso concreto de Como Antes, só espero que isso não venha a acontecer. Esta é uma obra carregada de humanismo, de nos deixar com vários nós na garganta, e sobre a vida, tal como ela é. Se não é a melhor obra do ano, estará entre as 10 melhores, sem qualquer dúvida e é o melhor livro da Devir em anos. Esta é uma obra de redenção que é obrigatório comprar e ler!
NOTA FINAL (1/10):
9.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Como Antes
Autor: Alfred
Editora: Devir
Páginas: 224, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 17 x 24 cms
Lançamento: Outubro de 2022
Um excelente livro, como já tinha referido. Pessoalmente impressionou-me tanto pela arte como pela história. A arte (estilizada) com uma belíssima (e contida) palete, serve perfeitamente a história, cria ambiente e conduz a narrativa. Espero que o leitor nacional saiba reconhecer a belíssima obra que por cá foi disponibilizada pela Devir - precisamos de outras outras obras deste autor e outras semelhantes que fujam ao registo extremamente conservador que marca as editoras locais.
ResponderEliminarSim, espero mesmo que este livro venda bem. Até para dar força e incentivo à Devir para continuar a apostar em banda desenhada europeia, de boa qualidade, para um público mais maduro.
EliminarGostei muito. Um que vai para a lista dos melhores que li este ano.
ResponderEliminarUm livro muito bom, sem dúvida!
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