sexta-feira, 17 de abril de 2020

Análise: Senso



Senso, de Alfred

A principal pretensão do Vinheta 2020 não será nunca analisar álbuns que são lançados em países estrangeiros mas antes, analisar e dar a conhecer tudo aquilo que se passa no universo da banda desenhada, lançada em Portugal. Não obstante, isso não deverá significar, unilateralmente, que livros estrangeiros não mereçam algum destaque, ou uma análise, sempre que se achar relevante ou conveniente para os leitores deste blog.

Admito até que tento sempre ler banda desenhada em português em detrimento de ler banda desenhada noutras línguas. Mesmo que a versão em português seja ligeiramente mais dispendiosa. Para mim, ler em inglês não apresenta quaisquer dificuldades e também me ajeito a ler em francês e em espanhol – embora de forma mais atabalhoada - mas, ainda assim, considero que não há nada como ler na nossa língua materna e daí retirar toda a profundidade dos significados – múltiplos - que as palavras podem tomar. Portanto, se leio noutras línguas é, essencialmente por 3 razões: 1) Ou faço compras de bd estrangeira numa qualquer viagem que faça; 2) Ou alguém me oferece os livros (é o caso deste Senso, de Alfred); 3) Ou compro um livro, geralmente pela internet, que me desperta muito interesse mas que não tem prevista edição em português. Esta última opção deixa-me sempre com um gosto amargo na boca. Mas é o que temos.

Focando agora este texto em Senso, de Alfred, devo admitir que é uma leitura refrescante, adulta, que apresenta um estilo de linha clara, bem ao jeito da escola franco-belga e que, por ventura, poderá – ou poderia – ser um livro aplaudido pelos leitores portugueses se tivesse versão na língua de Camões. Arrisco até que esta é uma obra que encaixaria muito bem na coleção de novelas gráficas da Levoir. Ou talvez mesmo se fosse lançada a solo por outra editora.

Alfred é um autor francês – cujo verdadeiro nome é Lionel Papagalli – e alcançou reconhecimento mundial quando, em 2013, lançou o álbum Come Prima, que lhe valeu a conquisa de um Fauve d'or no Festival de Angoulême de 2014. 

Este Senso, lançado em 2019, conta-nos a história de Germano que chega de combóio a uma cidade do sul de Itália, para se encontrar com a sua filha. Mas esse combóio está atrasado 6 horas devido a uma sufocante onda de calor que paralisou os transportes, e Germano vê-se forçado a adiar os planos com a sua filha para o dia seguinte, decidindo deslocar-se a pé até ao hotel, onde tinha previamente reservado um quarto. Contudo, ao chegar ao hotel, é-lhe dito que a sua reserva foi cancelada devido ao seu atraso e que agora o hotel se encontra totalmente ocupado por causa de um casamento que aí se vai realizar. E o grande problema é que aquele hotel é único num raio de muitos km's, o que não deixa alternativa ao protagonista senão fazer tempo no lobby do hotel. A sua primeira reação é ficar extremamente irritado mas o seu estado de espírito vai sendo alterado à medida que encontra um velho conhecido, que o convida para a festa de casamento, e que trava conhecimento com algumas personagens do hotel. Entre elas, uma mulher madura, livre e original na sua forma de estar, que o faz reviver um episódio verdadeiramente romântico. 

A narrativa, cujo período temporal se desenrola durante um dia e uma noite, oferece-nos uma história adulta e contemporânea daquilo que é – ou poderá ser- um romance entre pessoas maduras, que já tiveram uma outra vida e uma outra existência amorosa. Quase como uma segunda oportunidade para encontrar o amor, mostrando-nos como, e de que forma, uma situalão destas poderá acontecer. Nos dias que correm, em que as taxas de divórcio são cada vez mais elevadas na nossa sociedade ocidentalizada e onde pessoas adultas se vêem na situação de começar uma nova vida, este é um livro que toca um tema muito pertinente.

Mas não o faz de forma muito explicativa ou mesmo apoiando-se numa reflexão paternalista. Ao invés, apresenta-nos meramente um relato credível e verdadeiramente narrativo. Sem julgamentos, sem reflexões. Deixando ao leitor o espaço e o tempo para tirar as suas póprias reflexões. Por vezes, até parece um típico filme do Woody Allen, por apresentar situações, que mesmo parecendo extraordinárias, são situações quotidianas e completamente possíveis de acontecer.

O autor da obra alia muito bem um texto fácil e atual com uma arte tipicamente franco-belga, de linha clara, cores fortes, permitindo-se alguma liberdade, por vezes, para uma planificação mais dinâmica, com algumas vinhetas mais contemplativas, que são um verdadeiro prazer observar durante vários momentos. O seu estilo de ilustração lembrou-me, por vezes, o de Pedrosa na sua obra Portugal

O ritmo da história embora não sendo especialmente lento, permite-nos alguns momentos para respirar, contemplar, refletir. Por vezes somos confrontados com perguntas essenciais que incidem sobre as nossas vidas. Quer enquanto casais, quer a viver sozinho. E é por isso que é uma obra extremamente adulta. Subtil.

Há ainda alguns momentos carregados de um erotismo bastante explícito que aparecem enquanto momentos de interlúdio não sendo, no entanto, obscenos mas sim, poéticos. Diria que o estilo de ilustração utilizado para este tipo de interlúdios eróticos não me agradou tanto, em comparação com as ilustrações da restante história, mas como são partes que se pretendem mais abstractas, aceita-se que o autor tenha experimentado algo diferente.

É um trabalho de extrema qualidade que se recomenda a todos os fãs de bd europeia adulta – desde que não tenham problemas em ler na língua francesa. Quem sabe, este último requisito não cai por terra, se uma Editora portuguesa lançar esta obra. Aguardemos.

Convite: Passem no nosso instagram para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


NOTA FINAL (1/10):
8.4

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Ficha Técnica
Senso
Autor: Alfred
Editora: Delcourt / Mirages
Páginas:160 páginas, a cores
Encadernação: Capa Dura

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