quarta-feira, 8 de abril de 2020

Análise: Harley Quinn: Através do Espelho


Harley Quinn: Através do Espelho, de Mariko Tamaki e Steve Pugh


Harley Quinn: Através do Espelho, de Mariko Tamaki e Steve Pugh

Tenho que admitir que depois do maravilhoso Finalmente o Verão, também de Mariko Tamaki, as minhas altas espetativas para este Harley Quinn: Através do Espelho ficaram bastantes defraudadas, deixando-me desiludido. Bem, na verdade, não posso dizer que este seja um mau livro. Há bastantes coisas interessantes nesta nova abordagem a Harley Quinn. No entanto, depois de ler Finalmente o Verão, publicado pela Planeta Tangerina e que, curiosamente, também se destina a um público mais jovem, a verdade é que este Harley Quinn fica alguns furos abaixo e tem alguns tropeços ao longo do seu próprio caminho.

Mas vamos por partes. 

Começando, desta vez, por abordar a arte em primeiro lugar, posso afirmar que o trabalho de Steve Pugh neste Harley Quinn: Através do Espelho é absolutamente impressionante, o que me leva a dizer que a sua escolha foi uma aposta totalmente ganha neste livro. O seu desenho elaborado, num traço realista, a preto e branco (embora numa escala de azuis) - e, por vezes, colorido com algumas cores fortes - é verdadeiramente impressionante. A sua técnica de ilustração é por demais elaborada e, sinceramente, não há um único defeito que eu lhe consiga apontar. Caracterização das expressões faciais e anatomia das personagens, noção de espaço, detalhe nos cenários interiores e exteriores, planificação de páginas, uso de enquadramentos diversificados, a inteligência e sensibilidade na utilização das cores, enfim... acho que Steve Pugh faz tudo excecionalmente bem, neste livro. Se fosse apenas pela arte, acho que este livro mereceria nota máxima. É bonito de olhar e de observar.

Já Mariko Tamaki, faz um papel bastante convincente na criação da linguagem e do discurso de Harley Quinn. Ao longo do livro, a história é-nos narrada pela protagonista, na primeira pessoa, relatando os seus dilemas, as suas opiniões e, acima de tudo, permitindo-nos entrar dentro da sua mente e perceber como funciona o seu cérebro - por vezes demasiado infantil, por vezes demasiado ingénuo, por vezes cheio de boas intenções. E nisto, Tamaki faz um grande trabalho. A personagem de Harleen Quinzel é bem trabalhada pela autora e está verdadeiramente em linha com o que poderíamos esperar.

Onde as coisas não funcionam tão bem é na própria criação da história e em algumas personagens que habitam na órbita de Harley. E ainda que este seja um livro destinado a adolescentes que a DC lançou na sua linha DC Ink, o que pressupunha uma abordagem mais leve de toda a história, a narrativa acaba por ser uma mão cheia de nada.

A história remete-nos para uma Harley Quinn adolescente que acaba a viver com uma Drag Queen de Gotham City. Harley é ingénua e procura ferozmente por uma integração na sociedade que a envolve. Esta é uma premissa que sempre gostei na personagem de Harley. Ela, na verdade, está cheia de boas intenções mas, ao procurar fortemente a interligação com alguém ou algo, acaba por escolher (quase) sempre os maus caminhos. Até porque também é bastante influenciável. Isso já foi muito bem explorado em Harleen, de Stjepan Šejić, e aqui volta a ser bem explorado por Tamaki, embora de forma mais ligeira. O que se compreende, tendo em conta que é um livro destinado a adolescentes e jovens adultos.

No liceu, Harleen Quinzel começa a relacionar-se com Ivy, uma adolescente afro-americana que tem já uma consciência social bastante desenvolvida e não se coíbe de fazer manifestações, sempre que há algo no liceu, ou na sociedade, que considera injusto ou castrador das classes trabalhadoras. Esta versão da Ivy ativista até é interessante, embora não tenha gostado tanto que o aspeto da personagem original tenha mudado de ruiva, de pele branca, para uma rapariga afro-americana. Logicamente, não digo isto por questões raciais porque esta Ivy até está brilhantemente desenhada por Steve Pugh (mas neste livro, tudo está brilhantemente desenhado, sublinhe-se!) e, por isso, tem um aspeto com bastante carisma e beleza. Contudo, não gosto que uma personagem de um universo com o qual os leitores já têm tanta ligação, veja as suas características físicas básicas, completamente alteradas. Se assim é, porque não fazer Harley Quinn, um asiática, obesa, de óculos de massa? Seria incongruente e estranho, não é? Lá está! É o que se passa com esta Ivy. Podemos simplesmente não a ligar a Poison Ivy - mas, nesse caso, porquê chamar-lhe Ivy e fazer a alusão ao respeito pelas plantas? Mas se a ideia da autora era que, efetivamente, ligássemos esta Ivy a Poison Ivy, devia ter havido mais cuidado para que a coerência não se perdesse. Digo eu.

Mas Ivy nem é o principal problema neste livro. O principal problema é Joker. De todas e quaisquer formas. Em primeiro lugar, o conceito visual da personagem – embora, mais uma vez, bem desenhado por Steve Pugh – está completamente fora do sítio. Se, no recentemente publicado Harleen, também da Levoir, eu realcei algumas críticas a um Joker demasiado superficial no aspeto, nem sei o que diga sobre o Joker deste livro. Mesmo dando a benesse de, como as personagens são mais adolescentes, o Joker ser eventualmente adolescente também e, por esse motivo, não ter ainda a sua personalidade e aspeto desenvolvidos, o Joker que nos é dado neste Harley Quinn: Através do Espelho é bem capaz de ser a pior versão de Joker que já tive a oportunidade de ler. E a única ligação gráfica ao Joker que todos conhecemos será, por ventura, o cabelo verde, o fato roxo e as luvas brancas. Porque neste livro, a sua cara é toda ela coberta por um trapo branco, com um nó na nuca, com um sorriso desenhado em papel e aparentemente colado à cara e uns óculos de sol(!), estilo rayban. Não é assustador, não tem um estilo cool... é apenas piroso, ridículo e demasiado mau para ser verdade. No topo da cabeça, há ainda espaço para um cabelo verde à Justin Bieber sobressair. Muito mau. E há mais, o próprio livro mostra-nos a verdadeira identidade deste Joker mascarado e é uma revelação que pouco ou nada teria a ver com o Joker que todos conhecemos. “Ah, mas isto é uma realidade paralela”, dir-me-ão alguns. Pois mas, mesmo sendo uma realidade paralela, ou alternativa, deve ser mantida uma linha de coerência entre as identidades (físicas e mentais) das personagens que todos nós conhecemos. Pelo menos, na minha opinião. Com Harley Quinn isto até foi bem conseguido. Mas com as outras personagens, especialmente Joker e Ivy, as liberdades criativas que foram tomadas, simplesmente não correram bem. Destaque para o aparecimento de Batman, ainda como Bruce Wayne, que é introduzido de forma tímida mas interessante.

A restante história parece-me algo desinspirada e cliché também. Temos a comunidade queer à volta de Harley Quinn que acaba por nos dar algumas personagens simpáticas mas que não contribuem assim tanto para a profundidade da história. Temos a luta pelos direitos femininos de Ivy, que, embora pertinente, me pareceu demasiado ligeira e afastada dos reais problemas que afetam as mulheres na sociedade. E temos uma empresa ultra-capitalista que está a controlar a cidade. Tudo muito cliché, repito.

A arte é “fantabulástica”, como diria Harley Quinn. Curioso é verificar que a razão que inicialmente prendeu o meu interesse neste livro foi Tamaki mas acabou por ser Pugh que me deixou verdadeiramente satisfeito. Ser um livro para jovens adultos não justifica um certo desrespeito pelo aspeto original de personagens míticas e uma narrativa desinspirada. A própria Mariko Tamaki já o provou no fantástico Finalmente o Verão que, mesmo sendo igualmente direcionado para jovens, tem uma força e uma profundidade narrativas impressionantes.

Em conclusão, as ilustrações são maravilhosas. A história e a narrativa é mediana. É um daqueles casos em que a fantástica arte visual, salva o livro.

NOTA FINAL (1/10):
7.5

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Ficha Técnica
Harley Quinn: Através do Espelho
Autores: Mariko Tamaki e Steve Pugh
Editora: Levoir
Páginas: 200, a cores
Encadernação: Capa dura

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