quinta-feira, 2 de abril de 2020

Análise: A Assembleia das Mulheres

A Assembleia das Mulheres


A Assembleia das Mulheres, de Zé Nuno Fraga

A Assembleia das Mulheres, do estreante autor português Zé Nuno Fraga é mais um lançamento da Editora A Seita que prima pela sua originalidade. Sendo uma adaptação da famosa peça de teatro grega, Ecclesiazusae, de Aristófanes, demarca-se de tudo o que já vi em termos de lançamentos de banda desenhada portuguesa. E junta-se a Andrómeda, de Zé Burnay - que já aqui foi analisado - como mais um bom livro de banda desenhada em português, da Editora A Seita.

Ao pegar num texto clássico da comédia grega, transcrevendo-o literalmente, de forma a manter o texto original, A Assembleia das Mulheres acaba por ser uma comédia que se leva a sério, pois auto-garante o respeito e o comprometimento para com o texto original. E isso é de louvar, claro. Não obstante, herda também alguns problemas com essa decisão, uma vez que, como apontarei à frente, aqui e ali, o texto pode parecer um pouco extenso demais e sem o ritmo que uma comédia dos dias de hoje poderia exigir.

A história assenta num grupo de mulheres atenienses que se juntam de madrugada, vestidas com as túnicas dos seus maridos e munidas de barbas postiças, com o plano de reclamarem para si os destinos da governação do país. E, na manhã seguinte, fazendo-se passar por homens, marcam presença na assembleia dos homens e, com um discurso inflamado da sua líder Praxágora, acabam por conseguir instittuir uma ditadura das mulheres. O texto de Aristófanes, mesmo estando altamente carregado de comédia, vai mais além e, através do seu humor mordaz, consegue apontar lanças ao regime político que na altura vigorava na Grécia, ridicularizando as ideias de participação cívica, de democracia e de bem comum – até mesmo ao nível sexual. Atualmente, pode também ser lido como uma boa forma de ridicularizar os cânones básicos do comunismo.

O resultado não poderia ser outra coisa do que uma caricata situação, por vezes roçando o non sense, que nos leva a situações divertidas. E é aqui que a adaptação da peça grega à banda desenhada, por parte de Zé Nuno Fraga, encaixa que nem uma luva. As ilustrações do autor português são muito caricaturais, com expressões exageradas e divertidas, que facilmente nos colocam um sorriso na cara. Diria que é um casamento perfeito entre o texto e a arte. Zé Nuno Fraga é exímio na caracterização facial das personagens, conseguindo apresentar uma mão cheia de diferentes expressões para cada personagem, que dão profundidade e clareza às suas emoções.

Mas o autor não surpreende apenas na caracterização facial das personagens. O seu trabalho na ilustração de poses físicas das personagens é igualmente extraordinário e, ao mesmo tempo, divertido. E tendo em conta que o texto tem, por várias vezes, diálogos extensos, e que são passados no mesmo local – sendo provavelmente estes os principais problemas do livro – esta capacidade de Zé Nuno Fraga conseguir colocar, de vinheta para vinheta, a personagem numa pose completamente diferente, com uma expressão nova ou mesmo utilizando um plano de câmara diferente e arrojado, faz com que a obra tenha dinamismo e não seja cansativa de ler. E esse é um trunfo que revela bem a capacidade do autor.

A juntar a isto, o seu trabalho de cor é muito agradável à vista. De facto, A Assembleia das Mulheres é um livro bem bonito com as cores a serem aplicadas de forma muito graciosa. O próprio uso da luz e dos sombreados é saboroso de observar. Destaque ainda para a balonagem que é feita de forma muito dinâmica. Em termos de balonagem considero-me um bocado da “velha guarda” e acho que certas “modernices” que se impregam em algumas obras de banda desenhada, para dar mais dinâmica e originalidade, nem sempre funcionam bem e, às vezes, o leitor dá por si a ler e a reler balões para captar o sentido do discurso. Mas em A Assembleia das Mulheres, tenho que dar a mão à palmatória e admitir que a balonagem, sendo dinâmica e moderna, está perfeita de ler e acompanhar. Excelente trabalho neste cômputo.

Com uma arte tão bem conseguida e com um texto que tem sobrevivido ao passar dos séculos e que, portanto, só pode ser bom, penso que só há aqui uma coisa que não funciona tão bem, que já mencionei levemente. E isso resulta diretamente da tal opção do autor em ter usado o texto original. É que, sendo uma peça de teatro, e especialmente clássica, é algo que em termos cénicos é bastande limitada. Ou seja, apenas temos 4 cenários verdadeiramente diferentes: o cenário noturno inicial em que as mulheres conversam entre si e partilham o seu plano; o cenário do dia seguinte que nos mostra não só as mulheres na assembleia, como a conversa entre dois homens e, posteriormente entre marido e mulher; o cenário entre os dois vizinhos que discutem sobre o tema do bem comum; e a cena noturna final em que as mulheres disputam o amante. Ou seja, os cenários que habitam esta história são poucos e semelhantes entre si, tal e qual os cenários que teríamos num palco de teatro, se estivéssemos a assitir à peça de teatro. Além disso, o livro também tem alguns diálogos que são extensos e demoram muitas páginas, o que, na minha opinião, acaba por tirar alguma dinâmica à ação. Na verdade, acontecem poucas coisas embora se fale bastante. Claro que sendo uma adaptação de uma peça de teatro, e ainda por cima clássica, é natural que isto aconteça e, mais uma vez, faço vénias à forma como Zé Nuno Fraga consegue atenuar este senão com o seu recurso a caracterizações faciais e de pose soberbas. Quase como se estivesse a resolver um "problema" que adveio da escolha em usar o texto original sem adaptações. E no final, devo admitir que Zé Nuno Fraga quase resolveu esta questão.

É uma obra boa e recomendável mas penso que poderia ser melhor, se tivesse havido uma adaptação mais livre da obra. Sim, talvez a natureza purista que há em cada um de nós não ficasse tão satisfeita pela audácia de transpor o texto integral mas, possivelmente, o livro, como um todo, poderia resultar melhor com o encurtamento de alguns diálogos que se prolongam em demasia e com a introdução de mais cenários ou acontecimentos. Claro que isto de agradar a gregos e a troianos – e neste caso, falamos duma comédia grega o que faz mais sentido ainda – não é fácil. E se calhar, se o autor tem adaptado o texto de uma forma mais contemporânea teríamos uma série de outros problemas. Mas isso é um “se” e o que realmente interessa dizer é que A Assembleia das Mulheres é um livro que merece ser conhecido pelo público português e não só. De facto, acho até que é um trabalho com uma boa capacidade para ser exportado, devido a pegar na obra do aclamado Aristófenes. Considero uma pena se este livro não chegar – pelo menos - às livrarias gregas e às lojas de turismo de Atenas. E, quem sabe, a toda a parte do mundo, tal como a obra do autor grego também já chega.

Futuramente, passarei a estar muito atento ao trabalho mais que promissor de Zé Nuno Fraga. Uma nota final para a Editora A Seita que, em tão pouco tempo, já tem um trabalho tão respeitável no lançamento de banda desenhada em Portugal, à custa de trazer para o nosso país excelente banda desenhada estrangeira e também no impulso que está a dar a autores portugueses com muito potencial. Esta é mais uma edição de qualidade, com bom papel e capa rija, que é lançada a bom preço.

Este é pois um livro com uma premissa original que merece ser lido.


NOTA FINAL (1/10):
8.1


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Ficha Técnica
A Assembleia das Mulheres
Autor: Zé Nuno Fraga
Editora: A Seita
Páginas: 56, a cores
Encadernação: capa dura

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