A Ala dos Livros não demorou muito tempo entre o lançamento de Giant, no ano passado, e o lançamento deste Bootblack, no passado mês de Setembro. Giant foi, a meu ver, um dos melhores livros do ano passado e, sem surpresas, Bootblack é um dos melhores livros deste ano. Uma banda desenhada bem pensada, bem contada, bem desenhada, bem colorida e bem editada que se assume como um dos livros mais obrigatórios de 2022.
Antes de avançar, permitam-me, desde já, deixar uma nota bem clara. Se gostaram de Giant, diria que há 99,9% de possibilidades de gostarem deste Bootblack. E quando digo isto, não quero dizer que este livro é “mais do mesmo” porque, afinal de contas, até temos duas histórias completamente independentes entre ambos os livros. Quando digo que é quase impossível que um leitor que gostou de uma obra não gostar da outra é porque há todo um trabalho de fundo, por parte do autor Mikaël, que é comum às duas obras. São duas histórias de época, ambientadas em Nova Iorque, na primeira metade do século XX, e que nos trazem um desenho fantástico, com belas cores e uma clara perceção cinematográfica no modo como a narrativa nos é dada.
Com efeito, ler Bootblack é semelhante a vermos um belo filme de cinema. Posso citar filmes como Era uma Vez na América, Tudo Bons Rapazes, Sleepers – Sentimento de Revolta ou mesmo Lendas de Paixão, para vos referir que, à semelhança desses grandes clássicos do cinema, Bootblack parece ser uma daquelas histórias, maiores do que a vida, que nos marcam durante anos e anos. Porque há espaço para romance e para todas essas borboletas no estômago que as primeiras paixões despertam em cada um de nós; porque há espaço para as aventuras juvenis e primeiras amizades, pelas quais todos nós já passámos; porque há espaço para a guerra e para todo o nefasto que daí advém. Enfim, é uma história maior do que a vida, como já disse mais acima.
E Mikaël tem a capacidade de, num mero livro de 128 páginas em banda desenhada, sintetizar a labuta e os obstáculos com que toda uma geração americana teve que lidar, à medida em que a nação saiu do período dourado dos Loucos Anos 20 para a Grande Depressão e que havia de (re)emergir como a grande potência mundial que ainda hoje é. Um claro e belo trabalho de storytelling, por parte do autor.
Admito que se afirme que a história parece já ter sido contada noutras ocasiões – quer nos filmes que nomeei mais acima, quer noutros romances ambientados na época – todavia, é justo dizer que a história tem elementos e um enredo próprio e diferenciado, que a tornam única. Confesso até que adoraria ver a adaptação deste livro para cinema, numa oportunidade futura. Seria um belo filme se se mantivesse fiel ao livro.
Falando da história, esta leva-nos diretamente para o cenário desolado que a Segunda Guerra Mundial semeou em plena Alemanha. Arrancando a narrativa em 1945, já estava a guerra bem próxima do seu fim. O protagonista, Al, ou Altenberg Ferguson, que é o único soldado americano sobrevivente na sua unidade de combate, perscruta as suas memórias tentando, quiçá, relembrar a sua vida até esse momento. E é então que a história volta para trás e nos dá a conhecer o percurso do protagonista que, sendo filho de imigrantes alemães, nascido em território norte-americano, cedo encontrou nas ruas da Big Apple a sua melhor e, ao mesmo tempo, impetuosa companhia. Após o trágico incêndio que vitima os seus pais, Al vê-se forçado a viver na rua e a ganhar uns trocos enquanto engraxador de sapatos. Um “bootblack”, portanto.
Vamos, então, conhecendo as primeiras aventuras de Al, que acaba por se rodear de amigos com sorte semelhante à sua: são eles Shiny, Buster e Diddle Joe. Entretanto, surge em cena a irmã de Buster, a bela Maggie, por quem Al – e não só – vai nutrir uma forte e arrebatadora paixão.
A vida é madrasta para os rapazes, mas a sua sede de “serem alguém”, de superarem a sua condição social, e de resistirem à guerra entre gangs que assolava Nova Iorque durante este período, é grande. O que os vai fazer tomar algumas más decisões, com Al a acabar mesmo preso durante um período de 10 anos.
Novamente só e sem nada a perder, Al decide alistar-se no exército assim que acaba a sua pena de prisão. E é então que a guerra toma conta da sua vida. Não sem que, durante a mesma, Al volte a encontrar Diddle Joe para perceber que uma enorme traição condicionou a sua vida para sempre. Apetecia-me continuar a contar mais sobre esta bela história, mas fico-me por aqui. Terão que ler o livro para apreciar esta bela narrativa, um romance dramático, contado através de flashbacks em dois tempos e em dois lugares.
Se a história, o enredo e a narrativa são boas… o desenho de Mikaël, num belo traço semi-realista, é absolutamente soberbo e carregado de personalidade. A sua caracterização das personagens - e das suas expressões e da sua linguagem corporal – é muito bela. Mas se as personagens estão visualmente muito bem conseguidas por parte do autor, a caracterização da cidade de Nova Iorque merece todos os louvores possíveis! A forma como o autor visualiza e, diria ainda mais, perpetua aquela aura da "cidade dos sonhos" é absolutamente soberba e cada uma dessas vinhetas, que nos dão um vislumbre da cidade, poderia ser vendida como postal turístico desta época de ouro da "cidade que nunca dorme", onde o Art Déco era a tónica estética perfeita para o símbolo de hegemonia económico-social que a cidade sempre tentou representar. Mesmo que essa hegemonia fosse – como não? – apenas e só para alguns e que a cidade arrastasse para a miséria milhões de vidas como, aliás, o próprio Will Eisner já nos tinha mostrado no seu belo e aclamado Um Contrato com Deus.
Os enquadramentos escolhidos por Mikaël - por vezes arriscados e exigentes de um apurado virtuosismo no desenho - são fantásticos e sublinham o cariz cinematográfico da obra, enquanto que as belas cores, onde predominam os castanhos dos edifícios, os brancos da neve citadina e os amarelos soalheiros que envolvem a cidade, são um mimo para a vista. Isto já para não falar que, nos cenários de guerra da Alemanha, o autor nos brinda com uma aridez e uma destruição nos cenários que traz consigo toda a desolação cénica que uma guerra deve trazer.
A edição da Ala dos Livros está muito bem conseguida. A impressão e encadernação do livro apresenta muita qualidade, sendo o mesmo provido de capa dura baça e de papel brilhante de excelente qualidade. Recorde-se que este Bootblack tinha sido originalmente lançado em dois volumes separados, mas a Ala dos Livros optou – e bem! – por reunir os dois tomos num só volume integral como, aliás, também fez com Giant no ano passado. E tal como nesse livro, a capa e contracapa também são baseados nas duas capas dos dois volumes, o que faz com que este livro reúna as duas capas e seja belo de observar em qualquer um dos seus lados. Bootblack traz ainda um fantástico caderno gráfico com 15 páginas, onde nos é dada a oportunidade de ver os numerosos esboços para cada personagem que Mikaël fez, bem como três belíssimas e grandes ilustrações de página dupla. Um mimo para os olhos.
Em suma, Bootblack recebe o título de obrigatório e consegue mesmo ser melhor do que Giant, que já foi tão espetacular! Bootblack é um daqueles álbuns coesos onde tudo parece funcionar bem, de um autor que já conseguiu encontrar o seu signature style. Sabendo que se encontra a meio de mais um díptico, denominado Harlem, só posso "fazer figas" para que a Ala dos Livros continue a publicar essa terceira obra assim que esteja disponível. Em pouco tempo, Mikaël tornou-se um dos meus autores preferidos de banda desenhada.
NOTA FINAL (1/10):
9.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Bootblack - Edição Integral
Autor: Mikaël
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Setembro de 2022
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