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quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Análise: Estômago Animal e Espelho da Água

Estômago Animal e Espelho da Água, de Rui Cardoso Martins e João Sequeira - Polvo

Estômago Animal e Espelho da Água, de Rui Cardoso Martins e João Sequeira - Polvo
Estômago Animal e Espelho da Água, de Rui Cardoso Martins e João Sequeira

Foi durante o último Amadora BD que a editora Polvo editou, entre outros livros, a obra Estômago Animal, da autoria de João Sequeira, que adapta para banda desenhada mais um livro do escritor Rui Cardoso Martins. De resto, João Sequeira já o havia feito com Espelho da Água sendo, portanto, este Estômago Animal a segunda leva de BD por parte de ambos os autores.

Razão pela qual, hoje venho falar-vos dos dois livros. Não nesta, mas na edição de 2022, tive, inclusive, a oportunidade de apresentar Espelho da Água e de conversar um pouco com os dois autores. Fiquei então a saber que, embora estas bandas desenhadas sejam assentes nos textos dos livros originais de Rui Cardoso Martins, na verdade a iniciativa e o trabalho de os adaptar para banda desenhada derivaram da vontade de João Sequeira que, nestas adaptações, trilha o seu próprio caminho tendo depois, apenas, a anuência de Rui Cardoso Martins.

Estômago Animal e Espelho da Água, de Rui Cardoso Martins e João Sequeira - Polvo
Mas sendo dois livros feitos pelos mesmos autores, também há algumas diferenças entre si. Especialmente a nível da história. Espelho da Água é um livro mais toldado por um sentimento de crítica ou, pelo menos, que se alicerça na apresentação de factos do quotidiano, da vida como ela é, o que pressupõe, por conseguinte, um sentimento de crítica ou de desconforto de quem lê o livro.

A história começa com a travessia matinal do Tejo por parte de um cacilheiro. Mas quando aparece um cadáver a flutuar na água, os passageiros parecem sentir um susto de morte. Mas será pelo cadáver em si ou por toda a sua existência rotineira, de problemas ordinários e ocupações pequenas, numa vida que todos desejávamos que fosse grandiosa?

Vamos então conhecendo as vidas de vários passageiros do cacilheiro. É um conceito interessante e que funciona, embora me pareça algo aleatório, por vezes. Mesmo assim, gostei bastante da escrita e de algumas das subnarrativas que aqui aparecem. E as ilustrações de João Sequeira da cidade de Lisboa - bem como a planificação que é bastante dinâmica - deixaram-me bastante bem impressionado. O autor é dono de um estilo verdadeiramente poético.

Estômago Animal e Espelho da Água, de Rui Cardoso Martins e João Sequeira - Polvo
Já quanto a Estômago Animal, estamos perante uma história que acaba mais por ser uma reflexão poética da natureza animal dos Homens. A obra faz, pois, uso de histórias curiosas que se inserem numa realidade mais rural, apresentando personagens muito próprias, que nos permitem fazer uma ponte direta para dentro de nós mesmos. Embora seja uma história única, Estômago Animal poderia ser dividido em 3 atos: o primeiro, em que nos é apresentada a luta que um pai agricultor e o seu filho travam contra um grupo de toupeiras que destrói a sua plantação de oliveiras; a segunda, em que esse mesmo filho (que é também o narrador da história) nos fala de uma longa refeição com mais de 13 horas de duração - e onde o chefe Vintém preparou várias iguarias através da utilização das partes menos nobres de vários animais, como nervos, gorduras e cartilagens; e o último, em que, depois da conversa entre os comensais da referida excêntrica refeição, somos levados para uma outra realidade, mais distante, quando nos é revelada uma curiosa e chocante história que decorre com uma tribo africana que aparenta ser o “pior povo do mundo”.

Mas atenção, embora eu esteja aqui a separar estas três subnarrativas, chamando-lhe “capítulos” ou “partes”, na realidade, não há qualquer separação físico-visual destes 3 atos no livro com a narrativa a fluir de forma natural e não segmentada. De facto, as várias partes estão interligadas de um modo muito natural e bem conseguido. Isso é uma coisa que sempre aprecio numa obra e que aqui acontece: vamos mudando de tema, mas sempre de uma forma orgânica. Tal como quando se diz que “a conversa é como as cerejas”. Aprecio isso. Mesmo assim, e apesar do mencionado, parece-me ser claro que há uma linha narrativa comum e reflexiva em tudo o que nos é dado nas várias partes deste livro. E sendo uma história bastante peculiar, apreciei bastante o local e ambiente para onde a obra me levou. Quer através das palavras de Rui Cardoso Martins, quer através das imagens criadas por João Sequeira.

Estômago Animal e Espelho da Água, de Rui Cardoso Martins e João Sequeira - Polvo
É verdade que gostei de Espelho da Água, mas tenho a dizer que, em termos de história, até preferi este Estômago Animal, pois traz consigo um ambiente e uma reflexão muito profundas e poéticas. Gostei bastante. Só tive pena que o final parecesse algo abrupto acordando, com alguma aspereza, o leitor desta letargia saborosa para onde a obra o havia levado. Julgo que um maior número de páginas ou um final mais (bem) pensado, poderiam ter levado a obra a outro patamar.

Mesmo assim, é um belo livro.

Em termos de ilustrações, João Sequeira apresenta-se em boa forma em ambos os livros. O seu estilo de ilustração é muito próprio e característico, sendo facilmente identificável em pouco segundos. O seu traço é bastante abstracto, com vários borrões a tinha negra a preencherem as ilustrações, mas até é verdade que, especialmente em Estômago Animal, até há um bom equílibrio entre imagens mais complexas, chamemos-lhes assim, e imagens mais simples de decifrar. Sou um verdadeiro adepto de toda a poesia visual que emana dos desenhos de Sequeira. Acho até, com algum pesar, que muitas vezes este é um autor esquecido até no próprio "meio" da banda desenhada nacional.

Estômago Animal e Espelho da Água, de Rui Cardoso Martins e João Sequeira - Polvo
Não posso dizer que ache que o trabalho de João Sequeira mude substancialmente de Espelho da Água para Estômago Animal. Se gostei bastante do lado citadino de Espelho da Água, também aprecei especialmente certas opções visuais tomadas pelo autor neste Estômago Animal. Em ambos os livros há várias ilustrações que são belíssimas.

Quanto à edição da Polvo, estamos perante um trabalho meritório. Ambos os livros apresentam capa dura baça, bom papel baço e boa encadernação e impressão. Depois da oportunidade que Como Flutuam as Pedras, de João Sequeira e Pedro Vieira Moura, editado pel’ A Seita, me deu para mergulhar nas belas ilustrações do autor num grande formato, não posso deixar de considerar que, possivelmente, estes dois livros da Polvo também seriam mais impactantes num maior formato. Acho que a arte de João Sequeira o merece. Porém, também não deixa de ser verdade que os livros funcionam bem neste formato. Será uma questão de preferência, concedo.

Em suma, quer Espelho da Água, quer Estômago Animal - e, por ventura, ainda mais este último - são belíssimos livros carregados de belas reflexões contemporâneas sobre nós próprios e o mundo que nos rodeia. E, claro, são poética e inspiradamente ilustrados pelo traço inconfundível de João Sequeira. Dois livros que merecem e devem ser lidos, portanto!


NOTAS FINAIS (1/10):
Espelho da Água: 8.4
Estômago Animal: 8.8


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Estômago Animal e Espelho da Água, de Rui Cardoso Martins e João Sequeira - Polvo

Fichas técnicas
Espelho da Água
Autores: João Sequeira e Rui Cardoso Martins
Editora: Polvo
Páginas: 56, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Novembro de 2022

Estômago Animal e Espelho da Água, de Rui Cardoso Martins e João Sequeira - Polvo

Estômago Animal
Autores: João Sequeira e Rui Cardoso Martins
Editora: Polvo
Páginas: 56, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Novembro de 2023

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