A coleção dos Clássicos da Literatura Portuguesa em BD, publicada em parceria pela editora Levoir e pela RTP, tem dado os seus frutos e a verdade é que, à medida que vou lendo mais livros da coleção, a minha percepção global sobre a mesma tem vindo a ser cada vez mais positiva. E este Maria Moisés, que adapta a obra homónima de Camilo Castelo Branco, também contribui para isso.
A adaptação para banda desenhada deste clássico da literatura é da autoria da primeira dupla feminina da coleção: Carina Correia e Joana Afonso. De Joana Afonso, eu confesso que já estava à espera de um bom nível de qualidade visual. E, mais uma vez, e caprichosamente, Joana Afonso voltou a não me deixar defraudado. Ainda está para chegar a primeira vez em que o faz. Já quanto a Carina Correia (autora de Conversas de BD, com João Miguel Lameiras), eu estava particularmente curioso, pois este Maria Moisés marca a sua estreia enquanto autora de banda desenhada. E Carina Correia pode estar orgulhosa do seu trabalho, diga-se.
Por uma questão de transparência, habitual aqui no Vinheta 2020, confesso-vos que não li a obra original de Camilo Castelo Branco. E nem sequer sabia muito sobre a mesma. É que, às vezes, ainda não lemos determinado livro, mas já sabemos muitas informações sobre o mesmo. Já nos falaram do mesmo ou já lemos informações sobre a obra. Mas sobre Maria Moisés, eu sabia pouco ou nada. Portanto, a minha análise sobre este livro não será tanto sobre a capacidade das autoras em se manterem fieis à obra original, mas apenas e só sobre uma questão mais global: funcionará bem este livro de banda desenhada? Funciona!
Maria Moisés, originalmente escrito no século XIX, insere-se no contexto da literatura romântica, da qual Camilo Castelo Branco, especialmente com o seu Amor de Perdição - também já adaptado por João Miguel Lameiras e Miguel Jorge numa edição da Levoir - será o expoente máximo da literatura portuguesa. Maria Moisés explora, com uma narrativa intensa e emocional, temas de amor, traição, destino e justiça, sendo que todos eles são apresentados com a típica profundidade psicológica e dramática que caracterizam a obra de Camilo Castelo Branco..
A história de Maria Moisés aparece-nos demarcadamente dividida em dois grandes momentos: por um lado, o amor trágico e "impossível" - para os valores vigentes da época - de Josefa da Lage com António de Queirós e Meneses e, por outro lado, a vida da filha de ambos: Maria Moisés. Por um desencontro temporal - e bem ao estilo de Shakespeare no seu célebre Romeu e Julieta - António vê-se confrontado com a morte da sua amada Josefa e, pleno de tristeza, refugia-se no Brasil para aí tentar encontrar algum alento na vida militar, bem longe da sua terra natal.
Mas o que António não sabe, é que a filha de ambos, que Josefa tinha no ventre, acaba por ver a luz do dia e ser adotada e educada por uns fidalgos locais. A criança havia sido encontrada no rio por um pescador e acabou por receber o nome de Maria Moisés. De uma primeira fase da vida em que não passava de um bebé abandonado por tudo e todos, Maria Moisés tem a sorte de ser adotada por fidalgos abastados que lhe proporcionam uma boa vida. Mais tarde, com a morte dos mesmos, a protagonista desta história herda a sua fortuna, que passa a utilizar para fazer caridade, transformando a agora sua Quinta de Santa Eulália num orfanato. Até que, passadas quase quatro décadas, o seu pai, António, regressa do Brasil. Mais não conto, precisam de ler o livro.
A narrativa montada por Carina Correia é-nos dada de forma escorreita e simples, mas não de um modo demasiado linear. E isto porque a autora foi especialmente bem sucedida na dosagem dos vários momentos do enredo que, assim dados ao leitor, nunca fazem com que o interesse do mesmo esmoreça. Por outro lado, apreciei especialmente a maneira como o Narrador da história, não participando ativamente na mesma, é ativo na forma como enrola e desenrola o novelo narrativo. Algo que me relembrou da audácia narrativa de Cervantes em Dom Quixote de la Mancha e que, claro está, também é bem ao jeito do Camilo Castelo Branco que eu conheço especialmente por Amor de Perdição.
Mesmo aceitando que Carina Correia se limitou a ser fiel ao texto original, acho que a maneira como, ainda assim, conseguiu assegurar esta curiosa forma de contar a história, num discurso que por vezes até é direto para com o leitor, oferece uma luz e uma cor muito especiais ao livro.
Já quanto a Joana Afonso, a autora volta a dar-nos um livro cuja arte funciona extremamente bem para a história romântica que temos em mãos. As personagens apresentam um estilo bastante "cartoonesco", onde a expressividade das mesmas é ideal para criar empatia com o leitor. Os cenários bucólicos são especialmente bem tratados e as belas cores tornam as ilustrações da autora ainda mais bonitas.
É, pois, um livro tipicamente "Joana Afonso". E quero com isto dizer que aqueles que, como eu, já apreciam o estilo de desenho da autora, ficarão facilmente satisfeitos com este Maria Moisés. Quanto àqueles que não engraçam com o estilo da autora, temo que continuem a ter a mesma postura, dado que Joana Afonso, com o seu signature style há muito encontrado, se mantém fiel ao mesmo, não inovando no desenho ou no estilo. Mas, diria eu, quando um trabalho já é bom na sua raiz, vai continuar a sê-lo mesmo que não se procure inovar.
Quanto à edição da Levoir, e à semelhança da restante coleção, o livro apresenta capa dura baça, bom papel brilhante no miolo, e boa encadernação e impressão. No final, há um dossier de extras, da autoria do Professor Sérgio Guimarães de Sousa, que oferece mais informações sobre Camilo Castelo Branco, o seu contexto histórico e, claro, sobre a obra em questão.
Em suma, a dupla formada por Carina Correia e Joana Afonso parece bem alinhada na adaptação para banda desenhada de Maria Moisés, originalmente escrito por Camilo Castelo Branco, e fá-lo de um modo que permite tornar presente a valência emocional e até de preocupação social e existencial da obra de Camilo - tão reconhecida do Romantismo português. Recomenda-se, portanto, para todas as idades.
NOTA FINAL (1/10):
8.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Maria Moisés
Autoras: Carina Correia e Joana Afonso
Baseado na obra original de: Camilo Castelo Branco
Editora: Levoir
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Outubro de 2024
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