A segunda obra lançada na Coleção Angoulême, que a Devir tem vindo a editar neste ano, não só é um clássico da banda desenhada sul-americana, como um clássico da banda desenhada internacional que muito influenciou outras obras que lhe sucederam. Falo de Alack Sinner, que é da autoria de José Muñoz e Carlos Sampayo.
Esta obra emblemática da banda desenhada noir, uma série da qual este livro lançado pela Devir é o segundo de um total de sete volumes, mistura crítica social e política, ao mesmo tempo que tem um estilo gráfico singular, que ainda hoje impacta pela sua original utilização do preto e branco puro.
Esta obra com mais de 40 anos tem como protagonista o detetive particular Alack Sinner, um ex-polícia cínico, solitário e introspectivo que opera numa Nova Iorque infestada de decadência, injustiça e corrupção. Além de ser uma narrativa policial protagonizada por uma cativante personagem desencantada com a vida, a obra consegue ir além dessa valência, procurando ser igualmente uma crónica sobre a condição humana e sobre a sociedade contemporânea. E mesmo passadas várias décadas desde o seu lançamento, é um daqueles livros que envelheceu bem e que se mantém atual e relevante no tempo atual.
Para isso, também contribui o facto do protagonista, Alack Sinner, ser uma figura que foge aos arquétipos convencionais do "detetive-herói". Ao contrário de outras personagens de histórias de detetives, Alack Sinner é imperfeito, alcóolico, melancólico, contraditório e em constante transformação ao longo dos capítulos. E chamo a atenção para esta última característica da personagem. À medida que vamos avançando no livro (e relembro que este é apenas um de sete volumes) vamos vendo uma personagem em mutação constante, que se vai definindo aos poucos. Se isso é interessante e enriquecedor para o leitor, pois está perante uma personagem multidimensional e, consequentemente, muito (mais) verossímil, a verdade é que isso também causa uma certa aleatoriedade, quer na personagem, quer nas suas aventuras que nos são apresentadas como histórias avulsas, embora com alguma ligação entre si.
E é especificamente a primeira história - ou o primeiro capítulo - deste Bófia ou Detetive, em que Alack Sinner, ainda polícia em atividade, se vê confrontado com um classe trabalhadora corrupta que silencia aqueles que querem acusar as corrupções existentes no seio da polícia, que eleva a obra para um patamar cimeiro. Há toda um dicotomia nesta primeira vivência da personagem, que faz com que a leitura seja impactante e enriquecedora. O facto da sua jornada profissional se misturar com a sua trajetória pessoal, em que as questões éticas o invadem, faz da obra uma banda desenhada quase existencial e filosófica. Alack Sinner acaba por ser mais vítima do que herói, numa abordagem desencantada que aproxima o leitor da experiência realista e amarga de viver numa sociedade desigual.
A crítica social está bem presente em toda a obra: temas como o racismo, a desigualdade, a violência policial, a guerra, o capitalismo predatório e a alienação das pessoas no meio urbano são presença constante. A cidade de Nova Iorque é-nos dada como um local onde os marginalizados não têm voz e os poderosos se mantêm impunes. A denúncia política é feita sem grandes dramatismos ou atitudes panfletárias, através da mera representação da vida quotidiana como ela é e dos casos que Sinner investiga, que muitas vezes revelam mais sobre a falência do sistema do que sobre o crime em si.
Há um certo charme nestas histórias - ou não fosse esta uma história noir - que é sublinhado pela música - o jazz em particular - que atravessa a obra como elemento estético e simbólico. Sinner frequenta bares onde músicos tocam temas melancólicos que dialogam com o estado de espírito das personagens. Essa ligação com o jazz remete à improvisação e à fluidez narrativa da obra, o que reflete o que já referi acima: há um lado bom em ler estas histórias, pois não sabemos bem para onde as mesmas nos vão levar -, mas também há um lado menos positivo: lá por adorarmos uma curta história que nos aparece, isso não quer dizer que não possamos achar enfadonha ou desinspirada a história seguinte. Mas assim é a vida e é isso que mais admiro na obra Alack Sinner, pois considero que esta progressão não linear, com a personagem a envelhecer e a mudar de opinião sobre vários assuntos, é rara, o que confere à obra um caráter quase literário, com a passagem do tempo e o desgaste físico e emocional do protagonista a funcionarem como uma clara metáfora da passagem histórica e das mudanças (ou da estagnação) sociais.
Se o protagonista e o tema são aliciantes, o estilo visual da obra também não nos deixa indiferentes. Especialmente se pensarmos que por esta altura ainda nem existia a obra-prima de Frank Miller - Sin City - fica fácil de compreender que Alack Sinner influenciou muito Sin City - para além do próprio nome das obras.
O estilo gráfico de Muñoz, expressivo e muito inovador, oferece traços carregados, contrastes acentuados entre um preto e branco puros, uma boa exploração do espaço negativo visual e uma estética expressionista ousada, contribuindo decisivamente para a atmosfera pesada e emocional da narrativa. Os rostos caricaturais, as sombras densas e os espaços urbanos claustrofóbicos refletem a tensão interna das personagens e o ambiente hostil que as cerca. A arte não serve apenas como pano de fundo, mas participa ativamente na construção de significado, funcionando como metáfora visual da decadência social.
Reconheço que, aqui e ali, há algumas vinhetas que se tornam um pouco complexas de decifrar, seja pelas poses algo deformadas das personagens, seja por um expressionismo mais exacerbado do que o habitual, mas também não deixa de ser verdade que, noutros casos, os desenhos de Muñoz são belíssimos.
A edição da Devir é em capa dura baça, com bom papel baço, boa encadernação e boa impressão. O formato mantém-se nos 17 x 24 cms - e será este o formato de todos os livros da Coleção Angoulême - o que será bastante reduzido para algumas obras da coleção. Mesmo assim, e ao contrário de A Trilogia Nikopol que saiu mais prejudicada por este formato diminuto, Alack Sinner não sofre tanto com este formato.
Em suma, Alack Sinner é uma obra madura, densa e de uma profundidade rara em banda desenhada, rompendo com fórmulas fáceis, desconstruindo aquilo que normalmente consideramos ser "um herói", ao mesmo tempo que nos oferece uma abordagem visual original, de enorme dimensão estética. Muñoz e Sampayo desenvolveram um universo sombrio, mas profundamente humano, em que cada página carrega uma reflexão sobre o mundo, a moralidade e o fracasso da modernidade. É uma leitura que exige envolvimento e recompensa com camadas de significado. Totalmente recomendável!
NOTA FINAL (1/10):
9.3
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Alack Sinner: Bófia ou Detetive
Autores: Muñoz e Sampayo
Editora: Devir
Páginas: 168, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Abril de 2023
A Devir continua a prestar um desserviço á BD com este formatinho que, recordo, ainda é mais reduzido que o equivalente francês. Lamentável a todos os títulos.
ResponderEliminar