Rubricas

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Análise: Homem de Neandertal

Homem de Neandertal, de André Diniz - Escorpião Azul

Homem de Neandertal, de André Diniz - Escorpião Azul
Homem de Neandertal, de André Diniz

Foi no passado LouriBD, o festival de banda desenhada da Lourinhã, que a editora Escorpião Azul apresentou a sua nova aposta: o lançamento de Homem de Neandertal, de André Diniz, o qual ainda não havia editado nenhuma obra com esta editora, embora o seu trabalho já esteja bem disseminado por várias editoras portuguesas como a Polvo (que reúne a grande parte das obras do autor no seu catálogo), A Seita (que editou recentemente Muzinga) e a Levoir (que editou O Idiota).

Homem de Neandertal é uma obra já com mais de 10 anos mas que, lamentavelmente, permanecia inédita em Portugal. E é um trabalho que tem duas particularidades curiosas: a primeira é que, à semelhança de O Idiota, é uma banda desenhada muda, sem recurso a quaisquer legendas ou balões de fala; e a segunda é que é um trabalho a cores, com as mesmas a serem asseguradas por Marcela Mannheimer.

Homem de Neandertal, de André Diniz - Escorpião Azul
A história coloca-nos no encalço de um Neandertal que, além de ter que enfrentar os expectáveis desafios que a natureza lhe impõe, a si e à sua espécie, se sente atordoado quando, de um momento para o outro, encontra algo que até então lhe era estranho: a arte rupestre criada por humanos. Quase que esta singela frase é suficiente para contar de forma sucinta tudo o que acontece neste Homem de Neandertal.

Todavia, isso não quererá dizer - de todo! - que os pressupostos da obra se findam por aí. Ao invés, é bastante profunda a reflexão que Homem de Neandertal nos propõe fazer. A criação da consciência artística, a necessidade de afirmação por via de uma expressão artística, o contacto com outras espécies e a finitude da nossa vida são noções e reflexões que a leitura desta banda desenhada sem textos nos desafia a fazer. 

É que o protagonista, ao tentar expressar-se artisticamente, acaba por ter de enfrentar obstáculos internos e externos, fazendo-nos refletir sobre o papel do talento, da dedicação e da influência cultural na realização artística.

Ao observar a arte rupestre criada pelos Homo sapiens, o protagonista desperta para algo novo: a capacidade de imaginar, representar e criar. A arte, aqui, é mais do que um adorno ou passatempo; é um elemento de transformação profunda. E é, portanto, notável como André Diniz representa a arte como um catalisador de consciência, sugerindo até que o contacto com o símbolo e a imagem pode ter sido um ponto de viragem na história evolutiva.

Homem de Neandertal, de André Diniz - Escorpião Azul
Este impacto profundo da arte rupestre no protagonista revela um dos eixos centrais da narrativa: a arte como elemento de humanização. É legítimo interpretar esta obra como uma verdadeira carta de amor à expressão artística e visual - uma homenagem àquilo que, mais do que qualquer ferramenta ou estrutura social, nos separa de todas as outras criaturas que habit(ar)am o planeta. A capacidade de representar, de imaginar e de deixar marcas intencionais no mundo é apresentada como o momento em que deixamos de ser apenas mais um animal e nos tornamos humanos.

André Diniz, com uma história silenciosa mas profundamente eloquente, propõe, pois, uma reflexão não apenas sobre a origem da arte, mas sobre o que significa ser humano. Homem de Neandertal é, portanto, um trabalho sensível, original e visualmente memorável, que convida à contemplação e reafirma o poder da arte como essência da nossa humanidade.

O trabalho de André Diniz revela-se notável nesse cômputo, com os desenhos a não precisarem de texto para conseguirem contar uma história e lançarem um tema para o debate. A narrativa visual é clara e expressiva, permitindo que o leitor compreenda os gestos, as emoções e os conflitos internos do protagonista sem a necessidade de palavras. 

Homem de Neandertal, de André Diniz - Escorpião Azul
A ausência de texto acaba por dar ainda mais ênfase ao traço geométrico e diferenciado de Diniz, que neste livro opta por um trabalho a cores — uma escolha que beneficia significativamente a narrativa. A utilização da cor torna a arte mais perceptível, clara e emocionalmente envolvente, ampliando a acessibilidade do livro e permitindo que atinja um público mais vasto. As cores não só guiam o olhar, como também transmitem atmosfera, emoções e contrastes culturais de forma subtil mas eficaz.

A edição da Escorpião Azul está bastante agradável e faz jus à obra. Foi da boca do próprio autor que, no último LouriBD, fiquei a saber que André Diniz não tinha ficado particularmente satisfeito com a primeira edição desta obra por uma editora brasileira. Mas, no caso da edição da Escorpião Azul, o trabalho está bem feito. O livro apresenta capa mole com badanas, com detalhes a verniz, bom papel  baço no interior e um prefácio do próprio autor. Conta também com as já habituais margens das páginas coloridas - desta vez com a cor verde - que dão singularidade e um aspeto bonito aos livros.

Em suma, estamos perante um silencioso mas igualmente ruidoso trabalho de André Diniz que nos relembra que talvez a única coisa que verdadeiramente deixamos após a nossa vida — além da nossa descendência biológica — seja a nossa criação artística. São as nossas criações, sejam elas quais forem, que deixam vestígios da imaginação e da expressão humanas, que atravessam o tempo e permanecem como legado. É essa arte que fala por nós quando já cá não estivermos. E André Diniz, ao contar essa história sem palavras, homenageia precisamente essa herança silenciosa mas eterna.


NOTA FINAL (1/10):
8.5



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020




-/-

Homem de Neandertal, de André Diniz - Escorpião Azul

Ficha técnica
Homem de Neandertal
Autor: André Diniz
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 104, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Fevereiro de 2025

Sem comentários:

Enviar um comentário