Rubricas

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Análise: Roughneck: Um Tipo Duro, de Jeff Lemire



Roughneck: Um Tipo Duro, de Jeff Lemire

Antes de falar sobre o conteúdo, propriamente dito, de Roughneck: Um Tipo Duro, que a G. Floy acaba de lançar, começo com uma menção à obra enquanto objecto físico: é fantástico e muito apetecível! Trata-se de um livro grossíssimo, de 272 páginas, impressas num papel de excelente gramagem - que acaba por tornar o volume ainda mais grosso - com uma capa também bastante grossa e com bom aspeto. Juntem a isso um artwork muito bom na capa, contracapa e lombada e temos um livro que é uma maravilha de segurar nas mãos. Relembrando a recente análise a Dylan Dog: O Imenso Adeus, onde referi que uma capa, se não for chamativa e/ou bonita, pode fazer com que um potencial leitor não se interesse por um livro, este Roughneck, por todos os motivos que aponto acima, é o inverso. Robusto, bonito e “apetitoso para a vista”. Um fantástico objeto do qual a G. Floy bem se pode orgulhar.

Mas se, tal como em tudo na vida, há livros bonitos por fora e que por dentro não valem grande coisa,  Roughneck: Um Tipo Duro não se insere, de forma alguma, nesses casos. Na verdade, é uma obra fantástica e impressionante quer no texto, quer na arte visual. Depois de findada a leitura deste livro inesquecível, o sentimento é apenas um: voltar à primeira página e embarcar novamente nesta viagem tão bem executada por Jeff Lemire.

Vamos por partes.

A história leva-nos a Pimitamon, localizada numa província no norte isolado do Canadá, onde o protagonista, Derek Ouelette, um antigo jogador de hóquei no gelo, ocupa agora os seus dias a beber e a envolver-se em lutas com toda a gente à sua volta, à mínima oportunidade para tal. A primeira parte desta história serve para nos mostar esta personagem violenta e amargurada com tudo. No entanto, passadas algumas dezenas de páginas, e vários episódios violentos, Derek vê-se confrontado com o regresso da sua irmã Beth, que veio procurar refúgio em Pimitamon, para conseguir fugir do seu violento namorado, que a anda a perseguir. Os dois irmãos decidem então esconder-se numa cabana isolada na floresta, para evitar mais confrontos. E é neste isolamento que vamos desbravando a personalidade dos irmãos e o seu passado comum, tão trágico, que os afectou para o resto das suas vidas. 

Algo que me parece magistral na concepção narrativa é a mudança que a chegada de Beth provoca em Derek. É que, por muito violento e desprendido que ele seja, com a sua irmã por perto, tudo passa a ser diferente. Jeff Lemire mostra-nos pois que, mesmo as personagens mais negativas, têm sempre algo a que se agarrar ainda. E é nesse ponto que habita a principal mensagem deste livro: é que ainda há - ou pode haver – redenção para que qualquer pessoa melhore a sua forma de estar na vida. Para que qualquer um se melhore a si, enquanto ser. Mesmo que caiba a cada um encontrar essa fonte de redenção. No caso de Derek, é a sua irmã Beth, por todas as vicissitudes das suas vidas, que o faz ser melhor, levando-o a mudar a sua conduta para poder ser mais comedido e ponderado, sempre com o objetivo de proteger a irmã. Quase como se ela fosse o último bilhete, a última hipótese, para ele ser uma melhor pessoa. E que premissa fantástica esta. Na verdade, julgo que já seria suficientemente boa e profunda para termos uma boa história. Mas com a introdução da personagem do namorado de Beth, Wade, o autor faz com que a narrativa ganhe um cariz (ainda mais) cinematográfico, de quase thriller, pois os momentos dos irmãos na cabana que vamos observando, vão sendo intercalados por páginas em que vemos Wade a aproximar-se cada vez mais da localização dos irmãos. Como se estivéssemos a caminhar, sem ponto de retorno, para uma apoteose narrativa final. E, na verdade, até estamos. Os flashbacks no tempo, são mais uma ferramenta narrativa que Lemire utiliza bem e que nos permitem mergulhar, ainda mais, nos momentos trágicos da infância dos irmãos e do passado de violência que os influenciou e condicionou na passagem para a vida adulta.

Temos já um livro físico bonito e uma história mais do que bem conseguida. O que falta agora? Uma arte inesquecível, elegante e com personalidade. Será pedir muito para Roughneck: Um Tipo Duro? Não, não é. 

A arte visual de Jeff Lemire nesta obra é bonita de se observar, e oferece à narrativa toda a harmonia que ela necessita. Chega a ser curiosa a forma como Jeff Lemire desenha: a base do seu desenho assenta em cima do esquisso. Mas depois, recebe umas camadas de cores a aguarela, maioritariamente em tons de azul e de cinza, que atenuam a crueza do desenho e permitem ao mesmo respirar melhor e ser mais harmonioso e bonito. A arte ilustrativa acaba por alcançar uma dualidade muito interessante: é que, tal como o protagonista Derek, a ilustração também é (aparentemente) crua e dura mas, lá no fundo, se olharmos com atenção, tem contornos suaves de uma beleza ímpar, apenas acessível a um olhar que saiba ser atento e perscrutador. E isto não pode ter sido acidental. Das duas uma: ou o autor soube construir uma história em torno da arte que tinha em mente; ou fez o oposto e construiu uma arte que soubesse acomodar de forma soberba a história. Em qualquer das hipóteses, uma coisa é certa: texto e ilustração casam-se de forma perfeita, fazendo-nos estar megulhados em ambas as coisas da primeira à última página. Genial.

A própria utilização de azuis, brancos e cinzentos, faz com que a ilustração apresente tonalidades claras e frias, que são a mistura perfeita para o cenário gélido do norte do Canadá. E a utilização de cores mais quentes e fortes para ilustrar as cenas do passado, ajudam-nos a deslocarmo-nos no tempo para a recordação de tempos mais quentes e marcantes na vida das personagens.

Uma coisa que se deve ter ainda em conta nesta obra é a forma como Jeff Lemire ocupa as suas páginas. A verdade é que esta história poderia ter sido feita em 30 páginas de banda desenhada. Senão vejamos: Irmão é violento. Irmã aparece. Refugiam-se num casebre no meio do nada para fugir de Wade. Eventualmente, Wade encontra-os. The end. Mas isso seria um livro para adolescentes e com pouco character building. Aqui, mesmo com uma história simples, é-nos dado tempo. E à medida que vou sendo cada vez mais experiente enquanto leitor de banda desenhada, considero que o tempo (ou páginas) para uma personagem ou um evento maturar, são das coisas mais importantes para garantir a força e importância de uma história. E isso, é aqui feito de forma perfeita. Com calma, com tempo, Jeff Lemire leva-nos a observar, a entrar na história verdadeiramente. Um autêntico portento da narrativa sequencial. De certa forma, ler os seus livros até pode parecer como estarmos a ler o storyboard para um filme. E digo isto, como sendo o melhor dos elogios. Porque, se um autor de banda desenhada consegue ter um cariz cinematográfico na sua criação, terá, a meu ver, uma boa capacidade para planificar ângulos de câmara, noção de tempo e dinâmica ou mesmo a capacidade de deixar, por vezes, os leitores numa situação de cliff hanger, em termos narrativos. Por exemplo, no final da luta que se dá entre Derek e Wade, somos presenteados com duas páginas a negro, ficando o suspense no ar. Tal como se fossem alguns segundos de fundo preto num filme. Que terá mesmo acontecido? Temos que esperar duas páginas para o descobrir. 

Jeff Lemire utiliza todas as ferramentas ao seu alcance para dar e baralhar as cartas que pretende dar com mestria. A nós só nos cabe fazer uma coisa: deixarmo-nos levar pela narrativa mais que soberba que o autor consegue produzir. No final, temos uma história adulta de redenção, maravilhosamente ilustrada. E tudo isto numa fantástica edição da G. Floy.

Preparem os vossos euros. Este tem mesmo que entrar na vossa estante de banda desenhada. Se estão mal de finanças, ajustem-se. Se a vossa estante de bd já está muito cheia, tirem algum livro para dar espaço. Este tem mesmo de ser comprado. Fantástico e uma das sugestões mais imperdíveis de todo o catálogo da G. Floy. Um forte candidato a livro do ano.


NOTA FINAL (1/10):
9.3

Convite: Passem na página de instagram do Vinehta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

-/-

Ficha técnica
Roughneck: Um Tipo Duro
Autor: Jeff Lemire
Editora: G. Floy
Páginas: 272, a cores
Capa: Dura

2 comentários:

  1. Hugo, antes de mais, gostaria de felicitá-lo por este novo blog dedicado à 9ª arte. Tive também a oportunidade de ler esta obra durante o recente período forçado de reclusão e , tal como Hugo, julgo não ter dado por mal entregue o meu tempo (e dinheiro). De facto a capacidade narrativa de Jeff Lemire é conhecida embora a sua obra seja algo desigual, este volume acima da média, não deslumbra mas também não desmerece. Pessoalmente gostaria de ver outras obras de fôlego e mérito reconhecido, desenhadas e escritas pelo autor, editadas por cá, como o Soldador Subaquático, Harrow County ou O Ninguém. Quem sabe...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro António. Agradeço-lhe pelas suas simpáticas palavras relativamente ao blog. Quanto a Lemire, concordo que a obra do autor é algo desigual entre si. Embora também possamos olhar para isso como sendo diversificada em estilo e em forma. Obrigado pelas suas sugestões de leitura. Cumprimentos.

      Eliminar