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terça-feira, 16 de junho de 2020

Análise: O Castelo dos Animais 1 - Miss Bengalore



O Castelo dos Animais 1 - Miss Bengalore, de Delep e Dorison

O Castelo dos Animais é a nova série que a Arte de Autor lançou há algumas semanas apenas. Esta série, que está planeada para quatro volumes, é da autoria de Xavier Dorison, autor profícuo que já nos deu séries de excelente qualidade como, são disso exemplo, Undertaker (editada pela Ala dos Livros), O Terceiro Testamento (editada pela já extinta Witloof) ou Long John Silver que, infelizmente, nunca foi editada em Portugal, apesar da sua enorme qualidade. A parte da ilustração de O Castelo dos Animais está entregue ao estreante Félix Delep que, parece tudo menos estreante, dada a excelência ilustrativa que aqui nos oferece. Esta é uma série que promete deixar muitos leitores “colados às páginas”.

A história é livremente inspirada no clássico da literatura O Triunfo dos Porcos, de George Orwell. À semelhança com a obra 1984, do mesmo autor, diria que Triunfo dos Porcos é dos livros mais importantes da literatura contemporânea. Publicado originalmente em 1945, surge como uma sátira à União Soviética comunista e narra, com audácia e detalhe, uma história de corrupção e traição, utilizando os animais de uma quinta como protagonistas, para retratar as fraquezas humanas e demolir a utopia do comunismo soviético, proposto pela União Soviética na época de Estaline. É um livro perfeito na concepção, na forma e no tom. Uma daquelas raras obras primas que estará sempre atual, aconteça o que acontecer no mundo dos homens. 

Assim, se este O Castelo dos Animais fosse uma mera adaptação do livro de Orwell para a banda desenhada, isso já seriam boas notícias, pois sempre me apraz quando a boa literatura é adaptada à bd. Mas esta obra de banda desenhada não é uma mera adaptação de O Triunfo dos Porcos. E ainda bem. Porque O Castelo dos Animais consegue traçar o seu próprio caminho. Agarra na premissa da obra de Orwell, mas envereda para a sua própria temática. De tal forma que, a meu ver, esta narrativa de Dorison ainda consegue passar uma mensagem mais acutilante e auto-consciente do que o texto original de George Orwell.

Vivendo numa quinta que é liderada por Sílvio, um imponente touro, que é servido e ajudado por uma milícia de cães agressivos, os restantes animais da quinta têm que sobreviver a um ambiente totalmente repressivo, em que se vêem forçados a trabalhar que nem escravos, para garantir a sua parca subsistência. Enquanto que os animais que dominam a quinta, comem bem e bebem champanhe. A revolta torna-se pois iminente mas a chave para o seu sucesso está (sempre?) na forma como a mesma é - ou deve ser - praticada. E é aqui que reside a grande moral deste primeiro tomo. A protagonista, Miss B., uma gata viúva com dois filhos para criar e sustentar, terá pois que unir forças a um coelho gigolo e a um rato viajante e bastante politizado, para conseguir derrubar a ditadura que Sílvio e os seus cães impõem a todos os restantes animais. A história, sendo política, é carregada de momentos de extrema agressividade e de ação, que nos prendem à trama. Sendo as personagens revolucionárias tão frágeis físicamente face aos seus opressores, o leitor está sempre na iminência de que algo de mau pode acontecer às personagens. 

De forma muito hábil, Dorison consegue juntar à trama a figura de Mahatma Gandhi para simbolizar a luta sem armas de um povo oprimido. O autor é magistral na maneira como doseia a informação política e as peripécias com que as personagens se deparam. É que o livro não podia ter uma temática mais adulta e série mas, ao mesmo tempo, e sem descurar isso, é um livro que se lê muito bem. Para um público bastante vasto. Dorison assume-se assim como um fantástico contador de histórias. Já o tinha demonstrado nas famosas bandas desenhadas acima referidas mas em O Castelo dos Animais parece estar em grande forma.

Quanto à arte visual, este livro (também) é soberbo. A qualidade da ilustração de Félix Delep é muito elevada. Diria que a sua grande mais valia são as expressões dos animais, que conseguem comunicar tão bem, dando força à veracidade da narrativa. Mas, a verdade é que os skills do ilustrador vão além disso. Os cenários são de uma beleza muito bem conseguida, com uma tendência muito franco-belga na execução. Admito, porém, que por vezes, o autor oferece-nos vinhetas com um fundo que envolve as personagens a apenas uma cor. Ainda que compreenda e aceite que esta opção serve, quase sempre, para sublinhar expressões ou momentos nas personagens, admito que gostaria que, por vezes, alguns cenários fossem menos despidos. É de realçar também como o ilustrador é exímio na linguagem corporal que oferece aos animais. É que, por um lado, os mesmos têm comportamentos humanos, personificados. Mas, por outro lado, as posturas e os gestos dos animais são muito verossímeis.  

As cores que, juntamente com Jessica Bodard, Delep também assegura, são bastante clássicas e bem utilizadas. A paleta de cores é bastante diversificada mas, tendo em conta que a história se desenrola numa quinta, as cores mais presentes são os castanhos, os verdes e os amarelos para oferecer à história aquele doce tom campestre. Nas cenas noturnas, temos os azuis e os roxos a imperar, o que torna a envolvente bastante acolhedora.

Eu que sou um confesso admirador de histórias em que os animais são personificados, tais como a fantástica série de banda desenhada Blacksad ou mesmo vários filmes de animação como Zootrópolis ou Cantar!, devo dizer que a maneira utilizada pelos autores para dar vida a este universo, onde são os animais que protagonizam a história, está fantástica. Aquilo que vemos são animais a terem comportamentos de humanos mas não esquecendo de que se tratam de animais. E ainda que as suas expressões, emoções, preocupações, trabalho e aspirações sejam bem humanas, é uma história de animais que nos é dada, apesar de tudo. Por esse motivo, os animais não são bípedes, nem aparecem vestidos – embora tenham alguns elementos decorativos como colares, medalhas, ou laços. 

Quanto à edição, este é um livro lindíssimo de segurar nas mãos. Com uma capa com uma textura sedosa, semelhante àquela utilizada na série Os Cavaleiros de Heliópolis, a Arte de Autor, continua comprometida com os leitores, em dar-lhes edições de qualidade superior. O título e nome dos autore, bem como a imagem de Miss Bengalore da contracapa, receberam verniz o que faz sobressair, ainda mais, o charme e a classe nesta edição. Junte-se a isso uma excelente concepção de capa - em termos da ilustração da mesma, por parte do autor, e em termos da componente gráfica, ao nível da organização dos elementos, da escolha de cores, da elaboração da lombada - e temos um livro que é um luxo para os olhos e para as mãos.

A expressão “cada tiro, cada melro” parece ser indicada para descrever os lançamentos da Arte de Autor em 2020. Depois dos fantásticos e obrigatórios segundos números das séries Verões Felizes e Os Cavaleiros de Heliópolis, chega-nos uma série repleta de qualidade ao mais ínfimo pormenor. É difícil um amante de banda desenhada não encontrar neste primeiro volume de O Castelo dos Animais algo que considere majestoso. Porquê? Porque a obra – O Triunfo dos Porcos - onde esta série se baseia é quintessencial; porque a adaptação e reformulação da história está incrivelmente bem conseguida por parte de Xavier Dorison; porque a arte visual de Félix Delep é absolutamente atraente; e porque a edição é uma beleza para os olhos. Nada falha nesta banda desenhada. O único sentimento negativo que ela gera no leitor é o facto de se ter que esperar pelo próximo número, planeado para o início de 2021. Demasiado boa para não ser comprada por qualquer amante de boa banda desenhada. Obrigatória. 


NOTA FINAL (1/10):
9.3

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Ficha técnica
O Castelo dos Animais 1 - Miss Bengalore
Autores: Xavier Dorison e Félix Delep
Editora: Arte de Autor
Páginas: 72, a cores
Encadernação: Capa dura

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