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sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Análise: New York Cannibals



New York Cannibals, de Boucq e Charyn

Como já tinha sido anunciado no Vinheta 2020, a Ala dos Livros surpreendeu o mercado ao lançar recentemente New York Cannibals, da dupla criativa Jerome Charyn e François Boucq. Este lançamento foi feito na mesma altura do lançamento mundial, para o mercado franco-belga, o que é algo de louvar por parte da editora portuguesa.

Nesta obra, Boucq e Charyn voltam a pegar nas personagens da obra Little Tulip, que foi originalmente publicada em 2014 e que, em 2021, deverá ter edição em português, também pela Ala dos Livros. Mas entre os acontecimentos de Little Tulip e New York Cannibals, passaram-se 20 anos e Azami, que havia sido adoptada por Pavel, o tatuador, é agora uma mulher extremamente musculada, que se tornou polícia. Um dia, encontra um bebé nos caixotes de lixo de um beco e decide adoptá-lo, já que o seu corpo, devido aos esteróides que toma, a tornam estéril para procriar. Regressam algumas personagens com quem Pavel já se havia cruzado no Gulag, que fazem agora parte de uma rede criminosa, cujo caminho vai-se cruzar com Azami e Pavel.


A minha principal consideração sobre esta obra tem de ser só uma: este é um livro com uma história verdadeiramente original! Sendo um leitor de banda desenhada e de literatura experiente, tendo visto mais de 2.000 filmes segundo o site IMDB, ou tendo jogado centenas de videojogos, por vezes acontece-me algo desagradável: parece que cada história já foi lida, vista ou jogada por mim, noutra altura. Como se houvesse uma constante reciclagem de ideias que não me permita encontrar algo verdadeiramente novo ou original. Na banda desenhada isso também acontece muitas vezes. Claro que cada livro é um livro e há sempre coisas novas, nuances específicas, que tornam uma obra em algo único e singular. Ainda assim, é cada vez mais raro eu encontrar uma história que me surpreenda realmente. Em que eu não perceba bem para onde estou a ser levado narrativamente. Felizmente, New York Cannibals é exatamente essa história. Sendo uma história totalmente diferente, lembrou-me da série Bouncer, que Boucq assina em parceria com Alejandro Jodorowsky e que é, igualmente, original, especialmente se tivermos em conta de que se trata de um western, que recicla tantas vezes as mesmas ideias. 

Há um grande sentido de urgência narrativa neste New York Cannibals, proporcionado, também, pelo ritmo muito bom da narrativa e pelas personagens principais, com quem o leitor facilmente estabelece uma relação empática. Se olharmos bem, todas as personagens – excetuando, talvez, Pavel – têm algo exuberante ou exótico nelas. Seja na maneira de ser ou na sua constituição física. No entanto, isso não as torna demasiadamente exageradas para serem credíveis. Dá-lhes carisma e faz com que pareça que as conhecemos desde sempre. Ou, talvez até melhor do que isso, parece que as guardamos para sempre na nossa memória.

E, talvez por isso, este New York Cannibals obrigou-me a fazer uma leitura compulsiva, tal não é o interesse que a história, da forma como está construída, desperta no leitor. As personagens algo exóticas e originais, a própria construção do argumento, o ritmo da narrativa, as situações criadas, tudo está bem feito. 


Também a cidade de Nova Iorque tem um tratamento muito especial convidando o leitor não a uma visita turística à cidade, mas antes a uma visita aos reais meandros da cidade. Não aparecem pois, os pontos emblemáticos da cidade como o Empire State Building, a estátua da Liberdade, o Central Park, a ponte de Brooklyn, o World Trade Center, a Wall Street, a Times Square, a 5ª Avenida, a Broadway, etc, mas aparecem os locais mais sujos e pouco tratados da cidade. A estes, é dado por Boucq uma caracterização gráfica excelente, com becos e vielas ornamentados por paredes pintadas com spray, que nos transportam automática e facilmente para a ambiência de Nova Iorque, e levando-me a considerar que o autor faz um trabalho irrepreensível na forma como utiliza a cidade nesta história, com uma utilização de luzes e cores audaz, que nos remete para os anos oitenta.

Como já referi, as personagens são daquilo que é mais inesquecível nesta obra. Muitas delas são andrógenas, havendo mulheres com corpos masculinos – como a protagonista Azami – ou homens com corpos femininos. Para além disso, há um certo desfile de horrores nesta obra, um verdadeiro freak show, com a aparição de temas algo pesados, sejam eles personagens sem pernas; bebés deixados no lixo; tráfico humano; uma sociedade secreta de lésbicas; canibais que procuram alimentar a sua paixão por sangue humano, através de um curioso e intrincado negócio que envolve vários quadrantes da sociedade civil… enfim, a história é bastante adulta nos temas que apresenta. Mas nem por isso, apresenta muita violência gráfica. Sublinhe-se ainda a maléfica e carismática vilã da história que, certamente, ficará na memória de quase todos os leitores. 

A única coisa que não gostei tanto nesta obra foi a parte final da história, que achei um pouco over the top. Foi pena porque, ao longo do livro, até considerei que os autores souberam dosear muito bem as partes mais simbólicas e oníricas do argumento. A meu ver, nem sempre essas partes funcionam bem, mas considero que, neste caso, como a aura do simbolismo é passada para o leitor através de algumas personagens – e não tanto dos autores da obra – se torna bastante digerível, mesmo para aqueles que não têm tanta paciência para argumentos mais metafísicos. E assim sendo, esta é uma obra, cujo argumento assenta numa premissa possível e realista para depois, mergulhar criativamente numa realidade obscura e maléfica. O que aqui é descrito até pode ser improvável e ficcional, mas consegue alicerçar-se de forma credível e bem explanada pelos autores.


Há aqui também uma crítica – ou, talvez, uma visão crítica – bastante subtil dos autores em relação à forma como os ricos e poderosos submetem os pobres e fracos, de forma a extrair deles o que quer que seja, para conseguirem realizar os seus desejos e caprichos pessoais.

Em relação à arte visual, trata-se de um trabalho fiel àquilo a que Boucq já nos habituou. E tal como em O Guardião ou Bouncer, o seu traço mantém-se fiel ao que já conhecemos. Trata-se de um estilo de desenho bastante realista, num curioso equilíbrio ente o desenho rabiscado e o desenho detalhado. E mesmo que, por vezes, algumas pranchas pareçam cruas e rudes na sua conceção, a verdade é que, se soubermos analisar e observar atentamente a sua arte, ficaremos maravilhados perante a precisão e detalhe com que Boucq preenche cada vinheta. Tem um claro e demarcado signature style. É fácil para qualquer pessoa olhar para um desenho de Boucq não identificado e perceber logo que se trata de um Boucq. Lembro-me que quando, há já vários anos, me deparei pela primeira vez com a sua arte – possivelmente no primeiro álbum de Bouncer – não me senti muito cativado à primeira tentativa. Mas, fui-me habituando ao seu estilo e hoje em dia, considero-o um ilustrador maravilhoso e de referência na banda desenhada. Um claro exemplo do “primeiro estranha-se, depois entranha-se”. 

Finalmente, quanto à edição da Ala dos Livros, estamos perante um trabalho de qualidade. Capa dura, papel brilhante de boa espessura, qualidade de encadernação. Está tudo bem feito e isso é algo a que a editora portuguesa nos tem habituado. Nota ainda para a capa que, mesmo não sendo necessariamente bonita, é forte na mensagem que passa. Daquelas capas que sobressaem facilmente numa livraria, junto a muitos outros livros.

Em conclusão, este New York Cannibals é um dos melhores livros de banda desenhada lançados em 2020, com uma arte magnífica e com um argumento excelente que, só pela forma como baralha e distribui as cartas narrativas, me convenceu desde a primeira até à última página. Totalmente recomendado!


NOTA FINAL (1/10):
9.1




Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Ficha técnica
New York Cannibals
Autores: François Boucq e Jerome Charyn
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 156, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Setembro de 2020

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