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terça-feira, 25 de maio de 2021

Análise: O Pacto da Letargia

O Pacto da Letargia, de Miguelanxo Prado - Ala dos Livros

O Pacto da Letargia, de Miguelanxo Prado - Ala dos Livros
O Pacto da Letargia, de Miguelanxo Prado

O ano de 2020 abriu com uma forte aposta editorial da Ala dos Livros. O Pacto da Letargia marcou o regresso do autor galego multipremiado Miguelanxo Prado ao lançamento de livros, depois de um interregno de quatro anos. A sua última obra havia sido Presas Fáceis, que a Levoir editou em Portugal numa das suas coleções de Novelas Gráficas. Com O Pacto da Letargia, a Ala dos Livros assegurou um lançamento conjunto com a editora francesa Casterman. O que é algo que merece sempre as minhas vénias.

Posso dizer que já andava para ler este livro há muito tempo mas que só agora tive oportunidade para o fazer. Mas por aquilo que me foi dado a ver – ou pelas conversas que tive com alguns leitores de BD – esta é uma obra que ainda não foi lida por muitos, tendo passado ao lado de muita gente, mesmo sendo verdade que Prado é um autor muito querido e aclamado em Portugal. É que, relembremos, com apenas 2 meses de presença no mercado, com a vinda da Pandemia de Covid-19 para Portugal a meio de Março de 2020 e consequente confinamento e fecho das lojas, O Pacto da Letargia – e outras obras de bd lançadas na mesma altura – poderão ter sofrido com esta situação, em termos de vendas.

O Pacto da Letargia foi anunciado enquanto primeira parte de uma trilogia – a Trilogia do Tríscelo. Neste primeiro tomo, a história navega à volta do tal tríscelo, um objeto milenar e envolto num grande mistério mitológico que, aparentemente, pode acordar dois tipos de seres, os Demónios (ou Xámans) e os Anjos (ou os Puros), que se encontravam num longo sono hibernante há muitos, muitos anos. Porém, algo ou alguém se apoderou desse tríscelo e agora, estes seres dividem-se na maneira como devem atuar sobre a humanidade que, comportamento errático após comportamento errático, parece caminhar para a destruição do planeta. Isto se não se auto-destruir primeiro.

O Pacto da Letargia, de Miguelanxo Prado - Ala dos Livros
Acompanhamos então um jovem assistente universitário que encontra as notas de um antigo professor reformado, que pareciam indicar a presença desta tal ordem de anjos e demónios. Estamos perante um universo de cariz mágico e esotérico, que se inspira na cultura celta e seus símbolos e crenças. Algo pouco habitual nas obras de Prado. O seu trabalho é, aliás, muito mais caracterizado por uma sátira mordaz e irónica do mundo e das suas gentes. Mas aqui, em O Pacto da Letargia, o autor assume uma postura bastante mais séria, com um argumento muito mais complexo do que o atual. Claro que continuam as críticas à sociedade – com especial ênfase na sua avidez pelo enriquecimento pessoal em detrimento de tudo e todos (incluindo da preservação do planeta) – mas a componente humorística está quase totalmente retirada da obra. Embora, já em Presas Fáceis, o humor também não tinha aparecido.

Mas se esta pequena sinopse pode querer dizer que em O Pacto da Letargia estamos perante uma história com elementos de fantasia – e, de facto, estamos mesmo – dizer apenas isso será bastante redutor, já que é uma obra em que a narrativa assenta numa clássica investigação, num ambiente conspirativo, onde vamos tentando decifrar as personagens e suas motivações. Os elementos vão sendo dados ao leitor de forma lenta, de modo a que o nosso interesse e curiosidade se mantenham bastante alerta. Como se nós próprios também assumíssemos o papel de investigadores.

O Pacto da Letargia, de Miguelanxo Prado - Ala dos Livros
Não querendo revelar muito mais acerca da história, direi apenas que, no final, há uma sensação de algo que fica incompleto e uma certa tristeza por não se poder continuar a leitura. Fica tudo muito “no ar” e mal resolvido, mesmo que se possa considerar que esta é uma obra auto-conclusiva. Certas personagens têm um papel muito pequeno e julgo que poderiam ter sido mais bem desenvolvidas e exploradas. Como é uma obra que traz consigo um “guisado” com vários temas, como o esoterismo, as reviravoltas clássicas de uma história de investigação, a conspiração, as questões ambientais... pareceu-me que, apenas olhando para o primeiro livro, fica a faltar algo para que o livro seja mais memorável.

De qualquer maneira, há que admitir que Prado levantou de forma interessante as bases para esta história. Estou certo que a leitura dos três volumes de uma só vez será mais impactante para o leitor do que as leituras de forma separada. Claro que, havendo apenas um livro lançado até à data, esta é a forma possível de entrar nesta história de Prado. E até porque, tanto quanto sei, ainda não há sequer uma data anunciada para o segundo tomo.

Quanto à arte ilustrativa de Miguelanxo Prado, estamos perante um trabalho singular, tal não é a qualidade e originalidade das suas ilustrações. Há poucos dias eu falava, a propósito de Living Will, que a autora portuguesa Joana Afonso tem um estilo próprio – um signature style – muito demarcado. E, tal como ela, também Miguelanxo Prado tem um estilo muito característico e inconfundível. Os que já gostam da fantástica arte ilustrativa do autor, terão aqui mais uma prova do seu enorme talento.

Claro que há algumas diferenças na forma como Prado ilustra este O Pacto da Letargia, com especial destaque no estilo mais rectílineo – com muitas linhas que se prolongam pelos rostos das personagens e que permitem uma melhor exploração das suas expressões faciais. A arte de Prado é, sem sombra de dúvidas, diferente, original e especial. Há um código pictórico próprio que o autor continua a utilizar nas suas ilustrações, mesmo que lhes acrescente variações no estilo. Porque, mesmo sendo diferente, continua a ser Prado. E isso é uma sensação fantástica que o coloca no pequeno rol composto por alguns dos melhores autores de BD europeia de sempre.

O Pacto da Letargia, de Miguelanxo Prado - Ala dos Livros
E também em termos de cores, o autor continua a ser exímio na forma como aborda as suas ilustrações. Neste caso, temos cores mais claras e coloridas do que é habitual e que funcionam muito bem. Há uma leveza primaveril que transparece das cores das páginas deste livro, que muito apreciei.

A edição da Ala dos Livros é, mais uma vez, de grande qualidade. A encadernação, a capa dura, o papel de excelente gramagem e a qualidade da impressão transformam o "objeto-livro" em algo apetecível. 

Em termos de tipo de letra escolhido, tenho que dizer que quando os seres fantásticos falam na língua mágica, foi escolhida uma fonte com péssima legibilidade. Sei que também foi esta a fonte escolhida na obra original. Percebo que o autor tenha querido fazer com que esta linguagem mágica se demarcasse da linguagem normal das outras personagens. Ainda assim, haveriam muitas outras opções que conseguiriam esse feito sem que a leitura fosse tão prejudicada.

Concluindo, Prado é sinónimo de qualidade e O Pacto da Letargia não difere dessa ideia-chave que temos do autor. A arte continua a ser singular e extremamente bonita de se observar e a história, sendo desta vez de um cariz mais esotérico do que o habitual, traz algumas questões pertinentes. Não obstante, a resolução do argumento deste primeiro tomo (de um total de três) poderia, na minha opinião, ter sido mais inspirada. Seja como for, creio que os próximos volumes certamente atestarão a qualidade integral desta trilogia. Para já, temos em mãos um terço de uma obra que se perspetiva de qualidade superior. Esperemos pacientemente, então!


NOTA FINAL (1/10):
9.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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O Pacto da Letargia, de Miguelanxo Prado - Ala dos Livros

Ficha técnica
O Pacto da Letargia
Autor: Miguelanxo Prado
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 104, a cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Janeiro de 2020

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