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quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Entrevista a Miguel Peres - "Em Portugal, tem surgido uma nova geração que está a dar à BD nacional o salto qualitativo que precisava"



Hoje trago-vos mais uma interessantíssima conversa que tive com um autor português que considero ter um enorme potencial: Miguel Peres.

Dos seus trabalhos, já aqui analisei O Cemitério dos Sonhos e Random. Este último até está nomeado para melhor fanzine ou publicação independente nos prémios do Amadora BD deste ano.

Miguel Peres prepara-se para lançar o seu novo livro O Pescador de Memórias, que conta com ilustrações da autora brasileira Majory Yokomizo e que é editado pela Kingpin Books. O livro será lançado no Amadora BD, no dia 24 de Outubro, pelas 16h30, com a presença de Miguel Peres, o editor Mário Freitas e André Oliveira.

Abaixo, deixo-vos com a conversa que tive com o Miguel.



Entrevista



1. A Kingpin Books prepara-se para editar o livro O Pescador de Memórias. Mas a verdade é que o livro foi anteriormente lançado em inglês, pela editora Blue Fox Comics. Como tem sido a adesão do público estrangeiro à obra?
O livro foi lançado em abril deste ano no Kickstarter pela editora escocesa Blue Fox Comics e superou todas as minhas expectativas, já que conseguiu angariar cerca de 300 apoiantes e atingir 500% do valor inicial pedido. Acho que isto traduz a adesão inicial do público estrangeiro a uma obra de autores completamente desconhecidos nesse mercado. No geral, a adesão tem sido muito positiva e quando vês o teu livro a ser distribuído pelas principais livrarias britânicas, a conquista tem um sabor especial.



2. E, já agora, qual foi a razão que te levou a lançar primeiramente a obra em inglês e só depois em português? Prendeu-se com calendarizações editoriais ou foi, também, uma forma de testar o mercado estrangeiro?
Na altura em que estávamos a finalizar o livro, o impasse de editar em Portugal ainda era grande – vontade havia, mas não estava nada fechado. Portanto, decidimos apostar na versão inglesa e tentar primeiro a nossa sorte no mercado estrangeiro. Não vou cair naquele discurso artístico do costume em que, para ser reconhecido cá, é preciso ir lá para fora primeiro – acredito que foi pela história em si e não por uma suposta validação exterior. Portanto, acabou por ser uma mistura dos dois: tivemos essa questão da estreia no Reino Unido e também a de encontrar a melhor altura para lançar em Portugal, sobretudo na incerteza da pandemia.


3. Este é o teu primeiro livro publicado pela Kingpin Books. Qual a razão para esta obra não ser uma publicação da Bicho Carpinteiro como aconteceu com os teus últimos trabalhos?
Foram sobretudo duas as razões para o livro não ter sido publicado pela Bicho Carpinteiro Edições: uma delas foi o facto de eu me ter afastado em definitivo do projeto no final do ano passado. Orgulho-me do trabalho que desenvolvi em conjunto com o André Morgado, mas senti que o ciclo de auto-publicação chegara ao fim. Para evoluir enquanto autor, precisava de dar um passo qualitativo e essa é, no fundo, a outra razão para ser publicado pela Kingpin Books - queria ter a perspetiva de alguém com uma visão crítica, construtiva e interventiva. Ter sido aceite para entrar no catálogo foi para mim um reconhecimento e uma validação importante enquanto autor de BD.



4. Como tem sido trabalhar com o responsável da Kingpin Books, Mário Freitas?
O Mário Freitas dispensa apresentações, sendo que nem sempre reúne consenso à sua volta. Essa característica peculiar e em particular acabou por me aproximar dele, porque sabia que o Mário seria sempre brutalmente honesto comigo. Considero que só assim é que se consegue crescer como autor, não é com palmadas nas costas e dizer que está fantástico. Nós começámos a trabalhar juntos no RANDOM, onde já estava tudo demasiado fechado, por isso ele limitou-se à função de designer e legendador. No Pescador de Memórias já não foi assim - inicialmente também trabalhou toda a parte gráfica e a legendagem, mas acabou por se render à história e entrar como editor. E nesse campo, o Mário fez questão de ter o seu cunho muito pessoal e não replicar o que já se tinha publicado. O processo criativo foi saudável, repleto de negociações, recusas, sugestões, novas ideias e que culminou num género de “Editor’s Cut” ao acrescentarmos 5 páginas extra, exclusivas para a edição portuguesa. O balanço foi positivo, já que aprendi muito sobre a importância da legendagem, de certas subtilezas na disposição das vinhetas e pensar como leitor para identificar lacunas na história.


5. Esta edição conta com um prefácio do autor Edmond Baudoin. Imagino que tenha sido para ti um grande privilégio esta possibilidade?
O cuidado que tive com a construção do conceito, das personagens e da história foi muito maior e mais detalhado do que nas obras anteriores. Por isso, queria que qualquer pormenor à volta da edição seguisse o mesmo caminho. Na altura em que “A Viagem” de Edmond Baudoin foi publicado cá, fiquei atento à sua obra – não só por causa do seu traço fluido e onírico, mas também pela sensibilidade autobiográfica nas suas histórias. Como em bom português se diz, decidi “lançar o barro à parede” e contactá-lo para escrever o prefácio e ele, para minha grande surpresa, aceitou prontamente. Acredito que a decisão se tenha prendido sobretudo, por causa do tema - em 1995, Edmond Baudoin lançou “Éloge de la Poussière” onde retrata a luta da mãe contra a doença de Alzheimer e reflete a importância da memória. Portanto, para o autor, escrever este prefácio acabou por ser uma questão muito pessoal. Foi extremamente acessível e simpático, portanto foi daqueles privilégios que sei que não se vão repetir e, também por isso, me deixa particularmente feliz porque o torna especial.



6. Depois de uma ação non-stop em Random, O Pescador de Memórias parece ser um livro mais introspetivo e calmo. Algo como fizeste em O Cemitério dos Sonhos. Dirias que, em termos de história, o Pescador de Memórias estará mais perto desse trabalho ou é, ainda assim, muito diferente daquilo que já havias feito?
O Pescador de Memórias está muito perto do Cemitério dos Sonhos. Existe, aliás, uma relação não assumida entre os dois e que está patente logo na primeira página: a caixa que dá à costa tem escrito “CORAL”, uma alusão a uma das principais personagens do Cemitério dos Sonhos. Existem parecenças nas temáticas, sobretudo da importância da família, mas sem dúvida e com risco de falsa modéstia, O Pescador de Memórias reflete uma maturidade que não tinha há 5 anos. Na minha cabeça, estas duas histórias fazem parte de uma trilogia que hei-de terminar sobre o mundo onírico e a memória.


7. Olhando para as tuas obras de bd, encontro uma grande diversidade no tipo de histórias que crias. Sentes que ainda não encontraste “a tua voz” em termos de criador de histórias ou, pelo contrário, a tua voz é essa mesma, a de contar histórias com diferentes abordagens e com uma boa dose de ecletismo?
Esse é um dilema que ainda não resolvi e que aparece sempre que penso em novos projetos: será que a minha “voz” se traduz num género de camaleão, onde os leitores nunca sabem o que é que pode sair daqui ou ainda estou à procura do meu estilo? E se assumir um dos lados, é bom ou mau? Não tenho uma resposta definitiva.

Enquanto leitor, quando penso nos autores que adoro, geralmente existe um estilo muito vincado e sei o que quero e posso esperar. No entanto, como escritor, agrada-me essa imprevisibilidade, mesmo conhecendo o risco de perder um estilo próprio. É claro que isto advém das próprias referências e gostos que tenho, porque tanto leio um novo arco do Batman, como a seguir estou a ler Brecht Evens. Por um lado, adorava trabalhar para uma editora norte-americana reconhecida, por outro lado, também queria ser um autor de culto resistente ao mainstream. Como, a meu ver, estas posições são antagónicas, o que fica é um limbo que se pode traduzir em ecletismo. Até ver, prefiro assumir o meu lado artístico camaleónico.



8. A doença de Alzheimer é tema presente neste O Pescador de Memórias. Como foi abordar este assunto? Tens experiências de pessoas próximas que passaram pelo mesmo? Tiveste necessidade de te documentar sobre a doença?
Confesso que não me recordo exatamente porque é que decidi ir por aqui, já que a ideia inicial até era abordar a demência e não entrar pela especificidade da doença. Felizmente nunca tive casos próximos, portanto apoiei-me muito em testemunhos, tanto dos cuidadores como de quem sofre, que me ajudaram muito para que a parte clínica da história fosse credível. A fase da pesquisa é fundamental para quem escreve e percebi que em ideias anteriores tinha essa grande lacuna, tanto na parte técnica como no desenvolvimento do passado das personagens. Portanto desta vez tive o cuidado de investir mais tempo na fase de pré-produção. Por falar em pesquisa, encontrei um e-mail de fevereiro de 2018, onde o Fernando Dordio (curiosamente, um dos argumentistas da “casa” Kingpin Books) teve a amabilidade e paciência para fazer uma análise completa a um primeiro rascunho desta história. É engraçado reler o mail e perceber que alguns dos pontos de melhoria que levantou foram absorvidos.


9. A obra procura sensibilizar as pessoas sobre a doença?
Embora a doença seja o catalisador dos diferentes momentos do livro, não é o foco principal. Não tive a intenção de transformar o Lethe numa vítima indefesa do Alzheimer, onde se entra em grandes pormenores técnicos da doença, precisamente porque os temas centrais da história são a importância da família e da memória. É claro que não foi uma mera escolha estilística, o apelo à sensibilização para a doença está lá, mas é algo mais subtil do que se pode pensar. Não queria ir pelo óbvio e desenvolver esse lado, porque podia resvalar para a exploração gratuita.



10. Nesta obra as ilustrações ficaram a cargo da brasileira Majory Yokomizo. Como foi trabalhar com ela?
Inicialmente o projeto era para ser desenhado pelo Tainan Rocha, mas estávamos desencontrados em termos de disponibilidade para desenvolver a BD. A Majory Yokomizo surgiu assim como uma “discípula” do Tainan e não podia ter ficado mais satisfeito com o resultado final. Neste tipo de acontecimentos, acredito que o Universo tenha contribuído em larga para encontrar uma artista única. Acho que até hoje foi a autora com o ritmo de produção mais eficaz e rápido que encontrei, mas nunca perdendo a qualidade no traço e nas suas aguarelas. Durante todo o processo foi sempre disponível, sensível à crítica, simpática e com uma dose generosa de imaginação para dar vida à história. O timing para trabalhar com ela foi perfeito, porque ainda é uma artista emergente com um potencial enorme e por isso suspeito que daqui a uns tempos fique sem tempo para se dedicar a novas aventuras, pois já estará noutro nível de produção e de mercado. Formaram-se boas memórias para contar sobre o processo criativo.


11. Normalmente fazes colaborações com autores brasileiros. Porque é que existe esta tendência em ti para colaborares com autores brasileiros em detrimento de autores portugueses?
Antes de tudo, é preciso dizer que esta questão nada tem a ver com talento. Em Portugal, tem surgido uma nova geração que está a dar à BD nacional o salto qualitativo que precisava. Portanto, não pela falta de potencial por cá.


Agora, se olharmos para a minha carreira como argumentista desde 2011, a questão que colocas não reflete totalmente a verdade: até aos dias de hoje trabalhei com 13 artistas portugueses e 12 brasileiros. É natural que exista essa perceção porque o que é mais visível para o público em geral são as obras de grande fôlego e sim, nesse caso, a escolha tem recaído para os autores brasileiros. Há várias razões para isso acontecer, sendo que a principal é a diferença abismal da dimensão do mercado artístico português em relação à brasileira. A minha perceção é que em Portugal, infelizmente, são raros os artistas que conseguem dedicar-se em exclusivo à Banda Desenhada. Os que conseguem, em geral são absorvidos pelo mercado estrangeiro, por isso, quando têm alguma disponibilidade, dedicam-se aos seus próprios projetos (o que é natural). Portanto, o restante mercado é intermitente em termos de ritmos de produção, de disponibilidade, porque simplesmente não têm tempo nem condições. No meu caso, a escolha de artistas portugueses tem recaído quando surge a oportunidade de produzir curtas para antologias nacionais e internacionais. Reconheço que esta perspetiva é dura, mas sei se quiser uma obra maior, arrisco-me a ficar demasiado tempo à espera que o processo se desenvolva, por mais boa vontade e paixão que os artistas portugueses possam ter. Como sou impaciente por natureza, é assumida esta escolha. Mesmo assim, sempre tentei juntar artistas portugueses aos álbuns de BD, fosse através de curtas, ilustrações extra ou pela parte técnica de legendagem, com o intuito de levar o seu trabalho para outros mercados.

Já no Brasil, existem muitos artistas que se dedicam a tempo inteiro à BD, que têm uma gestão de tempo e ritmo de produção muito influenciada pelos comics americanos e, como partilhamos a Língua Portuguesa, o processo criativo não fica afetado. Depois, há também a questão da abertura ao mercado brasileiro, já que uma editora lá fica naturalmente mais inclinada a publicar um projeto onde participem autores do próprio país. Não estou a dizer que um livro só com artistas portugueses não possa lá ser publicado, até porque há casos de sucesso, mas existe uma componente editorial de incentivo aos seus artistas. Esta ponte artística não é nova, nos principais festivais de BD portugueses vemos muitos convidados brasileiros, ou seja, existe um reconhecimento do seu trabalho. A expectativa é que esta ligação traga novas dinâmicas de parcerias entre os dois mercados, que nós lá também tenhamos a atenção que merecemos.



12. Estando os ilustradores brasileiros separados de ti por uma grande distância geográfica, isso torna o processo criativo mais moroso e difícil ou sentes que se o teu ilustrador vivesse a dois quarteirões de distância, a dificuldade seria a mesma?
A internet, as ferramentas digitais esbatem essa distância geográfica. Mesmo com a diferença horária, nunca senti que o processo fosse mais demorado, até porque os guiões que desenvolvo já vão muito direcionados e descritivos, portanto é raro ter de fazer calls a explicar o que desenhar. Quanto à liberdade criativa dos artistas, confio e gosto de ser surpreendido, portanto o processo geralmente flui muito bem.


13. Depois deste O Pescador de Memórias, já tens projetos para o futuro, relativamente a novos livros de banda desenhada? Queres partilhar alguma novidade com os leitores do Vinheta 2020?
Tenho ideias em carteira, mas a minha nova aventura como pai é agora a história que estou concentrado em trilhar. Portanto, tão cedo não terei novidades, mas é bom porque quero que O Pescador de Memórias tenha espaço necessário para respirar e fazer o seu caminho no Reino Unido, no Brasil e em Portugal.

2 comentários:

  1. Sensacional! Parabéns ao Miguel pela bela obra conjunta. E obrigada pelo artigo, Vinheta.

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    1. Cara Thais, muito obrigado pelas simpáticas palavras! Eu próprio também gostei muito das respostas do Miguel.

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