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quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Análise: O Fogo Sagrado

O Fogo Sagrado, de Derradé - Escorpião Azul

O Fogo Sagrado, de Derradé - Escorpião Azul
O Fogo Sagrado, de Derradé

Derradé é um nome incontornável na banda desenhada portuguesa. Especialmente, para aqueles que gostam de banda desenhada humorística em Portugal. E, meio sem querer, meio de propósito, só com a afirmação que acabo de fazer acima, já estou a tocar num assunto sensível para o autor: aquele de que a banda desenhada de humor é frequentemente posta de lado por tudo e por todos. Pela crítica, pelos leitores, pelos prémios, pela indústria. Eu e Derradé já falámos até sobre isso, na entrevista que o autor concedeu ao Vinheta 2020. De facto, tenho que concordar com Derradé pois o humor em banda desenhada e, particularmente em Portugal, aparece muitas vezes associado a uma expressão menor, menos marcante. É uma pena que assim seja. Fazer humor não será, certamente, algo fácil de executar.

E essa irrelevância dada ao humor é um dos temas que a obra mais recente de Derradé, O Fogo Sagrado - que, curiosamente, partilha o título com o primeiro volume d’ O Mercenário, que também foi reeditado por cá durante 2021 – traz para cima da mesa. Mas não se fica por aí.

Num registo muito mais autobiográfico e sério – embora carregado dos expetáveis tiques de humor – Derradé abre o coração neste livro. Sem medos, sem vergonhas e com a coragem de colocar o dedo na ferida, tece aqui uma verdadeira carta de amor à banda desenhada enquanto autor e leitor. E, possivelmente mais importante que isso ainda, o autor passa a mensagem de que a paixão por algo que nos move e comove deve ser alimentada. Neste caso, é a banda desenhada. Mas é fácil construir uma ponte para qualquer outra que seja a paixão duma pessoa. O facto de não se conseguir (pelos motivos a), b) ou c) viver (financeiramente) de uma paixão… é sempre algo inglório e difícil de digerir para o criador. Mas deveremos, ainda assim, alimentar uma paixão que não gera dinheiro? Eu acredito que sim. No meu caso, por exemplo, é a música. Até costumo dizer que quando o músico não perde dinheiro, através da sua criação, isso já é uma vitória. Mesmo que não retire, depois, quaisquer ganhos da música. O mesmo poderá ser dito dos criadores de banda desenhada, estou certo. E de outras artes e expressões. Esse gosto, esse drive, para a criação é o tal "fogo sagrado" que Derradé enaltece neste livro.

O Fogo Sagrado, de Derradé - Escorpião Azul
Sempre com humor embora, em muitos casos, seja até uma sensação agri-doce aquilo que o autor nos oferece. Porque se, no seu vasto percurso na banda desenhada, o autor consegue ter a coragem de, humoristicamente falando, dizer que falhou nos seus intentos, isso faz-nos rir, por um lado, mas, ao mesmo tempo, também nos faz lamentar que o sucesso e a glória não tenham atingido o autor nem outros tantos autores de banda desenhada da nossa praça.

Embora haja uma linha cronológica que nos vai contando o percurso do autor, a obra aparece dividida por pequenos capítulos, que recebem título próprio e tudo. Alguns desses “capítulos” – chamamos-lhe assim – são mais informativos do que outros. Noutros casos, são pequenos gags humorísticos.

Tenho que dar destaque a The Day The Whole World Went Away. A meu ver, este pequeno capítulo de apenas duas páginas – e que até pode ser lido de forma isolada, sem que se perca nada – é verdadeiramente genial. Faz rir sendo, ao mesmo tempo, trágico e triste. A ideia de usar o barulho das gaivotas para um riso, que parece divino, acerca do fracasso do autor, é verdadeiramente sublime e faz o autor ascender, quanto a mim, à genialidade num só gag. E isto tudo ainda antes de chegar ao punchline desse mesmo capítulo, que também tem piada. Magistral. Já comprava o livro só por causa destas duas páginas.

Mas há muito mais do que isso! É que, ao contrário de ser um livro direcionado ao grande público – embora, naturalmente, este o possa (e deva) ler – o discurso, as piadas, as informações aqui contidas parecem auto-direcionar-se muito mais para a indústria, para os geeks do meio, para aqueles que já acompanham o universo da banda desenhada há muitos anos. É por isso que é natural que o aparecimento de personagens reais, como os editores da própria Escorpião Azul ou da Polvo, ou de Geral, com quem Derradé publicou vários livros, constitua um conjunto de referências e inside jokes muito divertidas, mas que, por ventura, não serão apanhadas pela generalidade do público.

O Fogo Sagrado, de Derradé - Escorpião Azul
Houve outra coisa que também me surpreendeu bastante neste O Fogo Sagrado que foi a própria noção de si mesmo que Derradé apresenta. Os ingleses chamam-lhe self-awareness. Achei fantástico como o autor, antevendo o que vai na cabeça do seu leitor – o tal leitor que está por dentro do universo da bd em Portugal – recolhe e dá as cartas. Faz as perguntas e dá as respostas. É por isso que, logo ao início, nos explica o porquê de este ser um livro editado pela Escorpião Azul e não pela Polvo. Ou que explica porque é que o desenho da sua própria personagem é mais magro do que o aspeto do autor na realidade. Tudo com muito humor e sem receios. “Antes que gozes ou critiques isto, eu fá-lo-ei primeiro que tu!”. Gosto disso.

Acaba por ser, então, uma carta de amor à banda desenhada, quer na ótica de quem é leitor, quer na ótica de quem é autor. E, portanto, é fácil revermo-nos nas experiências de Derradé à medida que vamos avançando na leitura do livro.

E desenganem-se aqueles que acham que como é um livro leve de humor, que se lê bem, não há lugar a críticas. De facto, até acho que a crítica à ausência de cultura e da aposta na mesma, é uma âncora sempre presente nos intuitos do autor com esta obra. Por vezes, talvez até o seja de uma forma algo exagerada, resvalando quase numa sensação de auto-comiseração. Mas, lá está, como o autor é inteligente e sabe aplicar uma boa dose de humor às próprias críticas que faz ou aos fracassos pessoais que partilha, acho que podemos dizer que se aceita este sentimento de auto-comiseração que, a passos, se encontra na leitura da obra.

O Fogo Sagrado, de Derradé - Escorpião Azul
Gostei também da forma como O Fogo Sagrado é uma narrativa dentro de uma outra narrativa. Desta forma, foi possível ao autor dar-nos dois estilos de ilustração diferentes, que aparecem bem conjugados por essa mesma opção narrativa, estilo o filme Inception, de ser uma banda desenhada dentro de uma banda desenhada. E que tem, até, um final muito bem conseguido.

Falando nesta dualidade, devo dizer que apreciei especialmente os desenhos de uma dessas narrativas. Aquela onde o livro começa e acaba. São desenhos que apresentam mais detalhe e onde o traço rabiscado do autor consegue efeitos bastante interessantes que até me remeteram (com a devida distância) para o trabalho de Joe Sacco. Quanto às outras páginas que compõem o livro, as mesmas apresentam ilustrações mais simplistas, a remeterem muito para a tira humorística, num desenho bastante linear, com cenários a branco, mas onde as expressões das personagens comunicam de forma inequívoca os sentimentos das mesmas. É simples, mas funciona bem. Repito, mesmo assim, que gostaria de ler um livro inteiro com aquelas ilustrações mais detalhadas que o autor nos dá no início e no fim de O Fogo Sagrado.

Olhando para a edição da Escorpião Azul, temos um livro bem ao género dos outros lançamentos da editora: capa mole com bandanas e papel branco de qualidade aceitável (100 gramas). Há também um prefácio do próprio autor, que enaltece o humor enquanto género que tem que se preservar, sedimentando pretensões e críticas adjacentes à obra.

Sei que, lamentavelmente, ainda me falta ler o aclamado A Loja de Derradé mas, daquilo que pude ler até agora do autor, este é o seu melhor livro. Fez-me rir, ficar triste e nostálgico, relembrar momentos importantes da história da banda desenhada, conhecer algumas coisas que não sabia sobre o autor e ainda refletir sobre as nossas paixões - o tal fogo sagrado! – e de como é importante conseguirmos guardar espaço nas nossas vidas para que as mesmas continuem a existir, aconteça o que acontecer. Seja banda desenhada, música, cinema, pintura, jardinagem, culinária, desporto, aeromodelismo… (you name it!). Interessa é que as fontes e destinos das nossas paixões continuem a ser alimentadas. E que mensagem mais bonita de passar do que essa? O Fogo Sagrado é um marco na carreira do autor e assume-se como um dos lançamentos mais relevantes na banda desenhada nacional deste ano. A não perder!


NOTA FINAL (1/10):
8.4


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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O Fogo Sagrado, de Derradé - Escorpião Azul

Ficha técnica
O Fogo Sagrado
Autor: Derradé
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 72, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Outubro de 2021

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