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sexta-feira, 26 de abril de 2024

Análise: E Depois do Abril

E Depois do Abril, de André Mateus e Filipe Duarte - Escorpião Azul

E Depois do Abril, de André Mateus e Filipe Duarte - Escorpião Azul
E Depois do Abril, de André Mateus e Filipe Duarte

O mais recente lançamento da editora Escorpião Azul traz-nos o regresso dos autores André Mateus e Filipe Duarte que, além de outras colaborações, já nos tinham dado, pela mesma editora, a obra A Última Nota. Desta feita, a dupla portuguesa traz-nos um livro onde traça um interessante exercício de reflexão através de uma premissa simples: que seria de Portugal se a revolução do 25 de Abril tivesse fracassado? Em que ponto estaríamos agora?

Tendo em conta a atualidade sócio-política que vivemos em Portugal - e também em muitos outros países - em que as mais recentes eleições revelam uma população mais próxima dos valores de direita do que aquilo que se poderia antever há uns anos, o lançamento deste E Depois do Abril, numa clara alusão à emblemática canção E Depois do Adeus, de José Niza e António Calvário, imortalizada pela voz de Paulo de Carvalho, revela-se particularmente oportuno e assume-se como um aviso à navegação. Sem ser demasiado panfletário, diga-se, pois mais que assumir uma posição política, a obra assume um tom de elogio da liberdade. E é esse o valor que, quanto a mim, mais interessa reiterar.

O protagonista da história é Alfredo Loureiro, um soldado que havia servido sob as ordens do Capitão Salgueiro Maia, e cuja ex-mulher, Celeste Horta, é líder do partido político clandestino FLOP (Frente da Libertação do Operariado Português). Apesar de, por estes motivos, Alfredo estar intimamente ligado a iniciativas anti-regime, é igualmente agente da PIDE, estando perto de alcançar a almejada reforma. Mas tudo muda quando a sua ex-mulher é capturada. A partir daqui, a viagem de Alfredo a tudo o que já viveu na luta pela liberdade, na relação com a sua ex-mulher e com o filho de ambos, vai-se tornando mais profunda até que desemboca numa cena final, bem ao jeito de filmes de ação.

E Depois do Abril, de André Mateus e Filipe Duarte - Escorpião Azul
O embalo inicial narrativo é forte e a (re)construção do espírito e vida de uma sociedade lisboeta fechada em si mesma e presa às amarras do Estado Novo, é bem captado por André Mateus no relato que aqui nos é oferecido. O autor é também bem sucedido na forma como utiliza a técnica de voz-off para melhor arrastar o leitor para a trama.

Não obstante, e mesmo sendo verdade que este mundo alternativo de ficção especulativa me cativou, com personagens cheias de portugalidade que nos remetem, com facilidade, para os anos 70 portugueses, confesso ter ficado algo desapontado com a resolução da trama que o autor dá à história a partir dos acontecimentos na Torre de Belém. Percebo a sugestão e clara influência de V de Vingança, de Alan Moore, mas, mesmo assim, pareceu-me que a história é subitamente acelerada. Até estava a gostar do rumo da mesma, mas achei que, do meio para a frente, a história carecia de mais tempo (páginas) e os eventos que nos são dados necessitariam de um desenlace mais convincente.

No entanto, também é justo dizer-se que é na voz-off que o texto de E Depois do Abril parece mais inspirado e onde a obra consegue assumir-se mais marcante. Porque, afinal de contas, é através desse texto que nos é dada uma segunda leitura, assente nas várias menções a estar-se numa realidade alternativa, a ser um “pesadelo” aquilo que Alfredo sente. Como se a obra encerrasse uma meta-comunicação em si mesma que considera demais nefasta a simples possibilidade de um Portugal sem democracia, de um Portugal sem liberdade, de um Portugal sem 25 de Abril.

Quanto ao trabalho de Filipe Duarte, devo dizer que, daquilo que conheço do autor, este é o trabalho que mais me impressionou. Adotando um registo a preto, branco e vermelho, o autor conseguiu oferecer à obra um belo ambiente noir e dramático, que se adequa muito bem à história. O vermelho só é usado em pequenos detalhes, como numa gravata, num automóvel, num fundo, no sangue e, claro, nos cravos. Funciona extremamente bem, dotando as ilustrações de um cariz um pouco mais artístico. O trabalho de Filipe Duarte impressionou-me especialmente nos momentos iniciais mais introspetivos da história. 

E Depois do Abril, de André Mateus e Filipe Duarte - Escorpião Azul
Marcelo Caetano é representado de forma caricatural por motivos óbvios, diria, o que também encaixa bem na ideia do livro. Destaco duas das páginas duplas que o autor nos oferece que trazem consigo alguns dos pontos mais altos da ilustração presente no livro. Falo da cena em que a Torre de Belém explode, visualmente impactante, e, especialmente, da página dupla em que Alfredo nos relata o seu pesadelo. Não só os desenhos de Filipe são muito impressionantes, com uma excelente gestão gráfico-narrativa, como o texto de André consegue ser verdadeiramente impactante. São estas, aliás, as duas páginas onde a sintonia entre a palavra de André e o desenho de Filipe conseguem atingir o seu melhor nível.

Mesmo sendo verdade que, tal como já disse, fiquei bastante bem impressionado com os desenhos de Filipe Duarte, considerei apenas que nem sempre os mesmos se apresentam ao mesmo nível. Por vezes, no que ao desenho diz respeito, sente-se alguma falta de coesão de uma vinheta para outra, com o aparecimento de algumas expressões faciais, linguagem corporal ou anatomia das personagens menos bem conseguidas. Dito por outras palavras, há neste E Depois do Abril desenhos bastante bons, mas também há desenhos que ficam aquém desse mesmo nível de qualidade. Não é que seja algo de grave ou que contamine a boa fruição da leitura, atenção, mas é algo que afasta a obra de ser ainda melhor e mais emblemática. Porque, de facto, quando Filipe Duarte está em pleno das suas capacidades, o seu trabalho não nos deixa indiferentes. É, portanto, pena que o autor não se apresente sempre ao mesmo nível ao longo de todo o livro.

A edição da Escorpião Azul é em capa mole, com badanas, e com bom papel baço no interior. A impressão e a encadernação são boas, também. As bordas das páginas são pintalgadas pela cor vermelha, o que se torna agradável à vista e encaixa, claro, muito bem na vertente gráfica da obra. No final do livro, há um dossier de extras de 9 páginas onde nos são mostradas capas alternativas, estudos de personagens, exercícios visuais de contexto e uma versão alternativa da morte de Salgueiro Maia. No início do livro, há ainda uma nota introdutória dos autores e um prefácio de Ana Gomes, ex-deputada do Parlamento Europeu. Devo dizer que o trabalho da Escorpião Azul se tem revelado melhor nos últimos livros lançados, como disso são exemplo as obras Elviro, Neon, O Breve Passado e Outras Histórias ou este E Depois do Abril.

Em suma, E Depois do Abril é um passo em frente para os autores André Mateus e Filipe Duarte e, ao mesmo tempo, traz consigo um exercício e uma reflexão pertinentes para um Portugal onde as divisões binárias e extremistas ocupam um lugar cada vez mais presente, não só em questões políticas, como um pouco por todo o tipo de temas com que nos deparamos num país que assinala por estes dias o 50º aniversário da sua nova democracia.


NOTA FINAL (1/10):
8.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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E Depois do Abril, de André Mateus e Filipe Duarte - Escorpião Azul

Ficha técnica
E Depois do Abril
Autores: André Mateus e Filipe Duarte
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 96, a duas cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Março de 2024

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