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quarta-feira, 10 de julho de 2024

Análise: Corto Maltese - A Rainha da Babilónia

Corto Maltese - A Rainha da Babilónia, de Bastien Vivès e Martin Quenehen - Arte de Autor


Corto Maltese - A Rainha da Babilónia, de Bastien Vivès e Martin Quenehen - Arte de Autor
Corto Maltese - A Rainha da Babilónia, de Bastien Vivès e Martin Quenehen

Se há coisas onde pareço ser uma voz dissonante, pelo menos em Portugal, é na opinião sobre a recente reinvenção de Corto Maltese que Vivès e Quenehen iniciaram em 2021 com o lançamento de Corto Maltese - Oceano Negro. E digo isto porque oiço e leio muita gente descontente com esta nova abordagem à emblemática personagem criada por Hugo Pratt. Todavia, a verdade é que - e pese embora o argumento não seja perfeito (mas também não os eram, quanto a mim, os de Pratt) - sou um admirador desta faceta moderna que os autores Vivès e Quenehen à personagem clássica de Corto Maltese.

A objeção que mais vejo surgir contra este novo Corto, é que as aventuras criadas por Quenehen, quer neste A Rainha da Babilónia, que hoje vos trago, quer em Oceano Negro, poderiam ter sido criadas para qualquer outra personagem. Que a única ligação do Corto de Quenehen ao Corto de Hugo Pratt é o nome da personagem. Não poderia discordar mais desta so called "objeção”. Ou, concordando, poderemos usá-lo conforme "dá jeito" para qualquer reimaginação de alguma personagem clássica: as histórias do Lucky Luke do Bonhomme também poderiam ser criadas para outra personagem que não Lucky Luke, as histórias do Spirou, desenvolvidas por Bravo, também poderiam ser criadas para outra personagem que não Spirou… enfim, estas objeções são frágeis como flocos de neve.

Corto Maltese - A Rainha da Babilónia, de Bastien Vivès e Martin Quenehen - Arte de Autor
E afirmar isso sobre este Corto Maltese é, quanto a mim, não perceber a real essência de Corto Maltese. Que não são as viagens que a personagem enceta ou a icónica indumentária que o marinheiro maltês enverga. É claro que isso também faz parte do folclore, chamemos-lhe assim, de Corto Maltese. Mas aquilo que mais define esta personagem e aquilo que a faz ser única, é o espírito de aventura, as reflexões profundas e a própria sensualidade da personagem e das suas peripécias. Queiramos nós admiti-lo ou não.

E espírito de aventura, reflexões profundas e sensualidade habitam - com toda a força! - neste A Rainha da Babilónia. Vou até mais longe e considero - especulando, é certo - que o próprio Hugo Pratt certamente apreciaria mais aquilo que Bastien Vivès e Martin Quenehen fazem por Corto Maltese, do que propriamente o trabalho que os autores Juan Díaz Canales e Rúben Pellejero têm feito por esta icónica personagem. E não o digo com desprimor para estes últimos. Também aprecio muito o seu trabalho, mas, lá está, arrisca menos, procura menos, almeja menos, consegue menos.

Neste A Rainha da Babilónia, estamos no ano 2002. O livro abre de uma forma maravilhosa. A sensualidade vivida entre Corto e Semira é qualquer coisa de espantosa. Para isso conta, claro, a forma elegante e bela como Vivès representa a interação entre as duas personagens, com a sua utilização de planos apertados e close ups que intensificam a experiência sensorial. Com efeito, só as primeiras páginas do livro já são de uma força grandiosa que ressoa no leitor. Só depois dessa ambientação, dessa introdução no mood pretendido, é que mergulhamos mesmo na história, que coloca Corto Maltese a unir-se a Ismet "Ćelo” Bajramović, uma personagem real que foi um reputado soldado bósnio que, no tempo do cerco a Sarajevo, teve um importante papel na luta pelo povo Bósnio. A ideia de Célo, Semira e o resto do gangue é intercetar um negócio entre os sérvios e os iraquianos, o que vai levar as personagens a um golpe na vidade de Veneza. 

Depois da brilhante cena inicial da história, verdadeiramente bem executada, quer no timing, na tensão, ou nos momentos de ação, a narrativa dá-nos um flashback onde recuamos no tempo de forma a conhecermos o que une Corto a Semira. Esta, que acaba por ser quem mais protagoniza este A Rainha da Babilónia - e o próprio título da obra o confirma - é uma mulher bósnia que Corto conhece alguns meses antes numa discoteca em Berlim. Semira tem traumas de guerra bem demarcados que tiveram origem na invasão da sua aldeia por parte dos soldados sérvios em 1992.

Corto Maltese - A Rainha da Babilónia, de Bastien Vivès e Martin Quenehen - Arte de Autor
Se Quenehen, enquanto argumentista, não me tinha deixado totalmente satisfeito em Oceano Negro, neste A Rainha da Babilónia conquistou-me com uma história mais bem urdida, em que o controlo narrativo do relato é mais bem executado e em que os diálogos fazem jus aos bons diálogos que sempre existiram nas aventuras de Corto Maltese. São inúmeras as citações que poderíamos tirar deste livro e inseri-las junto a um esboço de Hugo Pratt sem que alguém pudesse objetar que a citação não pertencia ao Corto de Pratt. O que me leva ao ponto inicial: Quenehen consegue aproximar-se do Corto Maltese naquilo que mais interessa: no espírito da personagem.

Lamento, ainda assim, que o enredo vá perdendo um certo fulgor ao longo da obra. Este é dos livros de Corto Maltese em que há mais ação. Depois de um golpe executado com sucesso, há um plot twist que muda a história e que leva Corto a refugiar-se junto de uma comunidade de ciganos, enquanto procura vingança perante a traição de que é vítima. Se até aqui o livro estava a deixar-me 100% satisfeito, a partir deste ponto tenho que admitir que a história se torna um pouco mais expectável, menos relevante e menos "Corto Maltesiana". Aqui, mergulhamos numa parte mais política e racional, em contraste com a parte mais sentimental e romântica de Corto da primeira parte da história. Acho que a coisa que causou o tal plot twist de que falei mais acima fez com que a história perdesse bastante da sua força, pois foi uma opção ousada e arriscada por parte do argumentista. E, depois de finda a leitura, reconhece-se que A Rainha da Babilónia começa em altas, mas acaba de forma algo murcha. Mesmo assim, com Corto Maltese a safar a sua pele um pouco à maneira de um Edmond Dantès em O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, não posso dizer que a história não funcione bem. Funciona e supera facilmente Oceano Negro mas, por momentos, julguei estar perante uma obra prima. Não o será, mas é um belo livro e um ótimo presságio para aquilo que Quenehen e Vivès ainda poderão vir a dar a Corto Maltese em futuros álbuns.

Corto Maltese - A Rainha da Babilónia, de Bastien Vivès e Martin Quenehen - Arte de Autor
Quanto a Bastien Vivès, já tinha ficado convencido no álbum anterior e aqui ainda fico mais. A maneira como o autor desenha é simplesmente bela e consegue abrir o espectro pictórico, tão emblemático!, de Corto Maltese a novos patamares. O autor mantém-se fiel ao estilo utilizado em Oceano Negro, portanto, retiro algumas das palavras que, por altura do lançamento dessa obra, já tive ocasião de escrever: "Bastien Vivès é dono de um estilo com muita personalidade (...) e brinda-nos, muitas vezes (...) com bonitas e elegantes ilustrações, que dão a este Corto Maltese um caráter próprio e singular, diferente do estilo de ilustração de Hugo Pratt, é certo, mas fazendo-lhe as devidas homenagens. Até porque, convenhamos, aquela poesia única e contemplativa no Corto Maltese de Hugo Pratt, também aparece no Corto Maltese de Vivès. Saibamos nós encontrá-la. Em termos de ilustração, o resultado final é diferente? Sim, sem dúvida. Mas a sensação poética inerente ao visual de Corto, povoado por horizontes áridos, pela presença do mar como musa inspiradora, por linhas claras e simples, mas plenas de sedução, está toda presente neste livro." 

O trabalho de edição por parte da editora Arte de Autor está muito bem feito e em linha com o trabalho feito pela editora na edição de Oceano Negro. O livro apresenta capa dura baça com detalhes, no nome da série, a verniz. O papel é brilhante e de boa qualidade e, no final, há um dossier de 12 páginas com um texto do jornalista Jean Hatzfeld sobre a obra, que é acompanhado por lindíssimas aguarelas e estudos de personagem de Bastien Vivès.

Em suma, se no primeiro livro eu tinha ficado, por um lado satisfeito, por outro lado de “pé atrás”, perante esta incursão dos autores Quenehen e Vivès no universo de Corto Maltese, com este A Rainha da Babilónia as minhas dúvidas saem dissipadas e estou bem mais satisfeito com estas novas aventuras que têm o condão de serem modernas, com vida própria, mas sem que isso belisque de alguma forma o espírito e vibe de uma das mais icónicas personagens da banda desenhada mundial. 


NOTA FINAL (1/10):
8.6



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Corto Maltese - A Rainha da Babilónia, de Bastien Vivès e Martin Quenehen - Arte de Autor

Ficha técnica
Corto Maltese - A Rainha da Babilónia
Autores: Martin Quenehen e Basiten Vivès
Editora: Arte de Autor
Páginas: 192, a preto e branco (mais caderno final a cores)
Encadernação: Capa dura
Formato: 196 x 285 mm
Lançamento: Abril de 2024

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