Há muito tempo que eu não via tanta divisão entre leitores de banda desenhada como vi a propósito deste novo Corto Maltese – Oceano Negro, que assinala o regresso do mítico marinheiro criado originalmente por Hugo Pratt. Ao contrário da dupla de criadores formada por Juan Diaz Canales e Ruben Pellejero que, desde que pegaram na franquia, procuram dar continuidade, em termos de argumento e de desenho, àquilo que Pratt nos tinha oferecido, Martin Quenehen e de Bastien Vivès apresentam-nos uma nova abordagem a Corto Maltese.
Corto Maltese é mais jovem neste Oceano Negro do que nas aventuras criadas por Pratt e, para além disso, a ação desenrola-se num tempo mais contemporâneo. Mais concretamente, na altura dos eventos do 11 de Setembro de 2001. Além disso, o desenho de Vivès, ao contrário do que acontece com Ruben Pellejero - em que as ilustrações tentam emular o desenho original de Pratt – tem personalidade própria, bem à imagem de Vivès, afastando-se do estilo de desenho de Hugo Pratt.
Ora, desde que estas informações foram tornadas públicas, as reações e a polémica, não só em Portugal como, também, lá fora, têm gerado uma forte e total polarização de opiniões. Uns odeiam e acham o maior atentado à obra de Hugo Pratt. Outros adoram e acham a coisa mais refrescante que aconteceu a Corto Maltese. Ora bem, sem tentar destoar, só porque sim, com todas as opiniões eloquentes e polarizadas que já li sobre este novo Corto Maltese, eu devo dizer que não o acho nem tão mau como uns o pintam, nem tão bom como outros o pintam.
Vamos lá por partes.
Em primeiro lugar, penso que importa que, acima de tudo, saibamos decidir por nós próprios se gostamos ou não de ver as personagens clássicas da bd a serem reinterpretadas noutro estilo, por outro autor. Julgo que o preconceito de muitos residirá aí. Esta é uma opção feita com várias séries do universo franco-belga (Spirou, Lucky Luke, Blake e Mortimer, entre outros exemplos) e, sinceramente, até se têm feito, quanto a mim, coisas muito interessantes nesse cômputo. Haver, portanto, a possibilidade de se fazer algo semelhante com Corto Maltese, parece-me, a priori, uma boa ideia. Sei que muita gente discorda desta minha opinião – e está no seu direito – mas pegar numa personagem clássica da bd e adaptá-la ao nosso tempo, seja ao nível do argumento, seja ao nível gráfico-visual, parece-me uma boa ideia para dar nova vida a essa personagem e, possivelmente, granjear-lhe novos fãs, junto das camadas mais jovens de leitores.
Ou melhor, parece-me que pode ser uma boa ideia. Também não o tem que ser só porque sim. Apenas quero aqui realçar que esse preconceito de achar que é bom ou mau só porque é diferente, me parece muito, muito, muito redutor. Claro que é uma aposta que também pode correr mal, não fazer sentido, não fazer jus à obra original. Mas isso, meus amigos, é uma coisa diferente. Só sabemos depois de finda a leitura. Não dá para opinar – de forma legítima, pelo menos – sem se conhecer algo, certo? Faz-me lembrar quando digo às minhas filhas: “como sabes se não gostas dessa comida se nunca a comeste?”. Só depois de provada a comida, ou de feita a leitura, é que há legitimidade para dizer: “de facto, não gostei” ou “olha, afinal até é bom”. Por outras palavras, o que estou aqui a defender é que o princípio em si de pegar em Corto Maltese e dar-lhe um visual diferente e um tipo de argumento diferente não é, necessária e taxativamente, “assassinar o legado de Hugo Pratt”, como aliás já tive oportunidade de ler na opinião de outrem.
Portanto, dito isto, este Corto Maltese – Oceano Negro até mais brilha, a meu ver, e contrariamente ao que muitos têm escrito, na parte do desenho. Bastien Vivès é dono de um estilo com muita personalidade – daqueles que muitos amam e muitos odeiam - e brinda-nos, muitas vezes – mas não sempre – com bonitas e elegantes ilustrações, que dão a este Corto Maltese um caráter próprio e singular, diferente do estilo de ilustração de Hugo Pratt, é certo, mas fazendo-lhe as devidas homenagens. Até porque, convenhamos, aquela poesia única e contemplativa no Corto Maltese de Hugo Pratt, também aparece no Corto Maltese de Vivès. Saibamos nós encontrá-la.
Em termos de ilustração, o resultado final é diferente? Sim, sem dúvida. Mas a sensação poética inerente ao visual de Corto, povoado por horizontes áridos, pela presença do mar como musa inspiradora, por linhas claras e simples, mas plenas de sedução, está toda presente neste livro. Portanto, a meu ver, e bem sei o quão subjetivo, isto é, onde Oceano Negro mais brilha é, especificamente, na componente visual.
Se posso implicar um pouco com o trabalho de Vivès neste livro é no facto de não ter gostado que em certas vinhetas existisse uma sensação de trabalho por finalizar. Ou, se preferirem, por expressões, por efeitos ou por detalhes, demasiado simplistas, que aparentavam estar inacabados. Numas vezes funciona bem, mas noutras vezes, fica a ideia: “terá o autor feito este desenho à pressa?”. Não me agrada muito isso. E, especialmente, porque é algo intermitente. Se a ilustração fosse sempre simplista e vazia, eu até aceitaria melhor. Como só o é em algumas vezes, fico menos satisfeito e com a sensação de detetar alguma preguiça ou desinspiração no autor.
Tirando isso, resta-me ainda dizer que gostei da representação visual da personagem de Corto, embora ache que, em algumas vinhetas, apresente mais parecenças com a personagem Valerian do que com Corto Maltese. A planificação das pranchas é, expetavelmente, clássica, remetendo-nos, quase sempre, para páginas divididas por 5 ou 6 vinhetas. O uso dos tons de cinza para dar profundidade aos cenários e às personagens, também é algo onde Vivès brilha.
Pondo de lado a arte ilustrativa, devo dizer que onde me espanta que as críticas negativas que tenho lido não arrasem a obra não é, pois, nos desenhos, mas antes no argumento. Aí sim, considero que o legado de Pratt não é igualado de forma alguma. A história que Martin Quenehen nos oferece é para lá do básico e revela-se bastante desinspirada.
A ação começa por se desenrolar no mar da china, passando pelas movimentadas ruas carregas de néon de Tóquio, e pelos picos da Cordilheira dos Andes, no Peru, até terminar em Espanha. Tudo começa quando Corto Maltese, numa boa cena de entrada na história, decide salvar a vida a um homem que lhe fala de um tesouro mítico perdido. Corto decide então procurá-lo.
O resto da ação desenrola-se depois de um modo muito periclitante, em que os vários episódios da trama parecem, por vezes, inseridos de forma atabalhoada. Há certas partes que são aquilo a que os ingleses chamam de filler. Ou seja, estão lá por estar. Se as retirarmos da história, não se acrescenta nem se perde nada à mesma. Até o próprio aparecimento de Rasputine me pareceu um pouco out of the blue, sem grande consistência ou importância para a história. Como que uma hommage mas algo gratuita. Só porque sim.
A edição da editora Arte de Autor está muito bem conseguida. Para além de uma bela capa dura, de um bom papel baço de um tom ligeiramente amarelado e de uma boa qualidade de impressão e de encadernação, o livro ainda é generoso o suficiente ao ponto de incluir 14 páginas de extras a cores, em que são mostrados alguns estudos de personagem e esboços preparatórios de Vivès com a personagem de Corto Maltese, bem como dois textos que nos introduzem à obra.
Em conclusão, se há alguém que não compreendeu bem a essência do Corto Maltese de Hugo Pratt, ou que, se a compreendeu não a conseguiu meter em prática, esse alguém não é Vivès, mas Quenehen. O ilustrador, tendo o bom senso de não tentar imitar o desenho original, faz aqui um trabalho deveras interessante, segundo o seu próprio universo visual. Já Quenehen, por seu lado, dá-nos uma história demasiado mundana e esquecível. Sabem o que é que eu gostaria mesmo de ver no futuro? Um novo Corto Maltese desenhado por Vivès, mas escrito por Juan Diaz Canales, por exemplo. Portanto concluo como comecei: não acho nem tão mau como uns dizem – este é um bom livro, apesar de tudo – nem o acho tão bom como outros dizem – podia ser bem melhor se tivesse um melhor argumento.
NOTA FINAL (1/10):
7.9
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Corto Maltese - Oceano Negro
Autores: Martin Quenehen e Bastien Vivès
Editora: Arte de Autor
Páginas: 180, a preto e branco (+ caderno final de 14 páginas a cores)
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Novembro de 2021
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