Com um número reduzido de obras de banda desenhada - quase todas elas adaptações de grandes obras da literatura universal, como 1984: Novela Gráfica, Ana dos Cabelos Ruivos ou este Fome - a 20|20 Editora lá tem construído um bom catálogo de banda desenhada. E a obra que vos trago hoje até acaba por ser um dos melhores livros de bd do catálogo da editora.
Adaptado a partir de Fome, a obra original de Knut Hamsun, este livro, da autoria do norueguês Martin Ernstsen, traz-nos uma história bastante original e, quiçá, diferente daquilo a que estamos mais habituados. A história passa-se em Kristiania (atual Oslo), algures nos finais do século XIX, e situa-se à volta de um narrador sem nome que nos vai contando a sua procura incessante por subsistir através da sua escrita. Mas o sucesso da sua escrita tarda em acontecer e, consequentemente, a personagem acaba por cair numa situação de miséria onde impera a fome. À medida que o jovem escritor não vai conseguindo os trabalhos que lhe são prometidos – ou assim ele o pensa, pelo menos – vai caindo numa espiral de pobreza e fome, enquanto vai ficando também despojado de todas os seus pertences, ao ponto de se tornar um sem abrigo. E sem nada para comer. Mas a sua persistência em tentar ser escritor acaba por ser o real alimento para a sua alma.
E, claro, sendo a personagem principal bastante complexa, o seu comportamento errático abre caminho a que seja uma pessoa algo maníaco-depressiva, onde demonstra euforia, delírio, raiva ou mau humor nos momentos errados. E talvez a característica que mais o atinge seja um desmedido orgulho por si mesmo e pela sua arte. Esta é uma obra originalmente considerada como um clássico da literatura mundial.
Confesso que embora a conhecesse de nome, nunca a tinha lido. E isso pode até, eventualmente, moldar a forma como olho para a obra, do ponto de vista do argumento. Isto porque, se a história e o protagonista aparentam ser interessantes e originais, devo dizer que, em termos de enredo, senti um claro ciclo repetitivo nesta obra. Mas, lá está, como não li o original, posso apenas suspeitar – embora, sem certezas – que essa repetição e esse ciclo narrativo redundante – também estará presente na obra original e que Martin Ernstsen se limitou a respeitá-lo na sua adaptação para banda desenhada.
Seja como for, de uma forma ou de outra, julgo ser justo dizer que essa redundância do protagonista estar constantemente a cair na mesma situação – sem que acontecimentos verdadeiramente relevantes lhe aconteçam – torna a leitura um pouco inglória. Isto porque primeiro cativa o leitor, fá-lo pensar, mas, sensivelmente a meio do livro, parece que a obra se esgota a si mesma em termos de ideias. Claro que há um final e uma pseudo-reflexão inerente ao mesmo, mas, a meu ver, sabe a pouco. Fica mal resolvido. É mais na ideia e na personagem que Fome mais brilha, quanto a mim. Não tanto no enredo e no desenvolvimento, propriamente dito, do argumento. Não obstante, para além da ideia e da personagem verdadeiramente interessantes, convém dizer que o trabalho de Martin Ernstsen me surpreendeu muito, pela positiva.
Isto porque este livro apresenta uma identidade gráfica muito própria com o autor a demonstrar ter na manga numerosas e dinâmicas ferramentas visuais para bem ilustrar uma história. Tanto assim é que até acaba por ser difícil dizer qual é bem o estilo gráfico do autor. Isto porque, sendo o livro, quase na sua totalidade, a preto e branco, com predominância de tons a sépia, encontramos ilustrações de página inteira que parecem ser verdadeiros quadros expressionistas, outros que parecem ser verdadeiros quadros realistas. Encontramos vinhetas ovais com o texto em legenda fora do desenho, que remetem para o livro ilustrado e, noutras vezes, encontramos um desenho caricatural, estilo cartoon, onde aparecem cores garridas. Há vinhetas grandes e vinhetas pequenas. Vinhetas de todas as formas e feitios.
O traço do autor lembrou-me bastante o traço de um outro autor que também gosto bastante e que já tem algumas obras publicadas em Portugal. Falo do espanhol Alfonso Zapico que tem as suas obras Gente de Dublin e Café Budapeste publicadas em português, pela Levoir, na sua Coleção Novelas Gráficas. E, em termos de desenho, também existe uma certa dualidade neste Fome: se, por vezes, o desenho parece bastante simplista e de estilo “abonecado”, noutras vezes, especialmente ao nível dos cenários, parece carregado de um verdadeiro realismo romântico. Já para não falar nos desenhos mais expressionistas, para descrever a loucura do protagonista da história, em que Ernstsen também se revela muito inspirado.
Sendo o desenho muito interessante, a planificação é ainda mais impressionante, pois estamos perante uma obra que, em termos de dinâmica na planificação, é fantástica. Ernstsen não é, certamente, um autor "preguiçoso", pois parece que cada página é pensada de forma demorada pelo autor, de modo a oferecer-nos uma boa imersão na história. É uma mistura extremamente bem conseguida entre o melhor que o livro de ilustração e o melhor que o livro de banda desenhada têm para nos oferecer.
Quanto à edição, temos um livro em capa dura, com papel espesso e baço, e uma encadernação e impressão de boa qualidade. Tudo bem feito pela 20|20 Editora e nada a objetar, exceto uma pequena nota para a promoção da obra, por parte da editora: o facto de todas as imagens promocionais praticamente não apresentarem vinhetas, faz com que o público da banda desenhada possa não ficar tão empolgado com o livro, pois olhando para as páginas promocionais que partilho neste artigo, bem que parece ser mais um livro ilustrado do que uma banda desenhada. O que não é o caso.
Em suma, posso dizer que como a história me cativou desde o início e como as ilustrações me pareciam muito interessantes, até meio do livro eu estava muito admirado e impressionado com a obra. No entanto, e devido a uma certa redundância de história e de um subaproveitamento da trama criada, a experiência final de leitura fez-me ficar com um "sorriso amarelo". Isto porque o livro poderia ser tão mais fantástico se depois a história não ficasse, assim, subaproveitada e esgotada! Ainda assim, é um livro bastante bom e um dos melhores da 20|20 Editora. Mais que não seja pelo trabalho impressionante de Martin Ernstsen, que usa inteligentemente as suas capacidades para nos dar um trabalho ímpar. Boa aposta!
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Fome: Novela Gráfica
Autor: Martin Ernstsen
Adaptado a partir da obra original de: Knut Hamsun
Editora: 20|20 Editora (Cavalo de Ferro)
Páginas: 232, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Outubro de 2021
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