Com um lançamento algo discreto que certamente passou fora do radar de muitos leitores, A Seita e a Comic Heart editaram em junho a antologia Sete Mulheres, Sete Musas - Lírica de Camões que consiste num projeto coletivo que reúne vários autores portugueses de banda desenhada em torno de um mesmo propósito: revisitar a obra e o imaginário de Luís de Camões a partir de uma perspetiva visual contemporânea.
Trata-se, pois, de uma iniciativa que procura aproximar a poesia camoniana de novos públicos, nomeadamente leitores mais jovens, e que, só por isso, é mais que bem-vinda, diria. Até porque se ainda há dúvidas sobre esta questão, este é mais um livro que mostra bem como a banda desenhada pode servir como meio de tradução e recriação literária, tornando acessível - ou, pelo menos, mais acessível - um universo poético tantas vezes considerado denso e distante como o de Camões.
Assim sendo, a importância deste projeto reside nessa capacidade de renovar o olhar sobre Luís de Camões, e da tentativa de retirar o poeta do pedestal escolar, colocando-o de novo no espaço da experimentação artística. Para tal, foram convidados sete ilustradores para desenhar uma história sobre cada uma das mulheres que marcaram presença na obra de Camões. As suas musas, portanto. Esses ilustradores são Amanda Baeza, Daniela Viçoso, Miguel Rocha, Jorge Marinho, José Smith Vargas, Rita Mota e Susa Monteiro que ilustraram as histórias a partir do argumento de Pedro Moura, autor experiente neste tipo de obras.
Como seria esperado, um dos aspetos mais cativantes do livro é a sua diversidade estética. Cada autor oferece uma leitura singular das musas de Camões, propondo interpretações visuais que vão do figurativo ao abstrato, do lírico ao experimental. Essa variedade torna a leitura uma experiência rica, por vezes desconcertante, mas sempre estimulante. A heterogeneidade dos estilos revela, lá está, o potencial da BD enquanto espaço de liberdade criativa e de diálogo com outras artes.
Entre as histórias que melhor equilibram clareza e densidade poética, destacam-se, quanto a mim, as de Daniela Viçoso e Miguel Rocha. Ambos os autores conseguem transpor para a linguagem da banda desenhada a musicalidade e a intensidade emocional dos versos de Camões, mas sem tornar o texto pesado ou excessivamente hermético. Coisa que acontece, infelizmente, noutras histórias do livro. A abordagem de Daniela Viçoso, mais narrativa e de forte influência mangá, permite que o leitor acompanhe a história com facilidade, enquanto Miguel Rocha aposta numa síntese expressiva de texto e imagem que traduz bem o sentimento amoroso e a melancolia do poeta. Os desenhos de Jorge Marinho, de quem já aqui foi analisado Os Contos de Miguel Torga : Um Roubo | Natal, também são muito impactantes, remetendo-nos para o grande mestre Sergio Toppi. Susa Monteiro, fiel ao seu estilo muito peculiar, também nos brinda com belos desenhos.
Nem todas as histórias conseguem, porém, atingir o equilíbrio necessário. Há autores que optam por caminhos mais abstratos e conceptuais, onde a dimensão visual se sobrepõe à narrativa. Estas histórias, embora visualmente interessantes, podem tornar-se difíceis de acompanhar e exigem do leitor um esforço interpretativo maior. Ainda assim, não deixam de ter valor (obviamente!), pois oferecem um exercício estético desafiante que convida à contemplação e à análise formal.
Essa pluralidade de leituras e de intenções é, afinal, um dos pontos fortes da obra. Sete Mulheres, Sete Musas não procura impor uma leitura única de Camões, mas abrir um campo de possibilidades. Em cada história, o poeta é reinventado, questionado, reinterpretado. A multiplicidade das vozes autorais reflete a própria complexidade da figura camoniana, mostrando-se simultaneamente erudita e popular, clássica e moderna, universal e profundamente portuguesa.
Do ponto de vista editorial, o livro revela um tom algo académico, tanto pela seriedade do tema como pelo esforço de auto-contextualização através dos (longos) textos introdutórios de Cátia Verguete e Alexandra Lourenço Dias. No final, há ainda um interessante texto de Janek Scholz sobre a "historicidade na banda desenhada em língua portuguesa". De resto, o livro apresenta capa mole baça, com badanas, e um bom papel brilhante no seu miolo.
Em suma, Sete Mulheres, Sete Musas tenta levar Camões a novos públicos através de imagens e narrativas visuais que, embora desiguais na sua eficácia, revelam uma grande ambição estética e um profundo respeito pela poesia do autor. Vale a pena ser lido. E ainda que possa não conquistar o grande público, este é um livro necessário no panorama cultural português. Mostra que a banda desenhada é um meio maduro, capaz de dialogar com os grandes nomes da literatura e de oferecer novas formas de leitura e interpretação. A presença de um elenco notável de autores nacionais reforça essa ideia, celebrando a vitalidade da BD portuguesa e a sua capacidade de reinvenção.
NOTA FINAL (1/10):
7.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Sete Mulheres, Sete Musas
Autores: Amanda Baeza, Daniela Viçoso, Miguel Rocha, Jorge Marinho, José Smith Vargas, Pedro Moura, Rita Mota e Susa Monteiro
Editoras: A Seita e Comic Heart
Páginas: 72, a cores
Encadernação: Capa mole com badanas
Formato: 168 x 244 mm
Lançamento: Junho de 2025
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