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segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Análise: O Progresso da Humanidade

O Progresso da Humanidade, de João Sequeira e Rui Cardoso Martins - Polvo

O Progresso da Humanidade, de João Sequeira e Rui Cardoso Martins - Polvo
O Progresso da Humanidade, de João Sequeira e Rui Cardoso Martins

A editora Polvo voltou a dar-nos, recentemente, mais um livro da dupla formada por João Sequeira e pelo escritor Rui Cardoso Martins. Desta feita, chega-nos O Progresso da Humanidade, depois dos interessantes livros Espelho da ÁguaEstômago Animal.

E ainda que se verifiquem pontos em comum entre as três obras, diria que esta nova empreitada oferece-nos uma abordagem diferente ao nível da história. É certo que continua a verificar-se uma crítica social envolta ao retrato lusitano, mas em O Progresso da Humanidade estamos perante um policial na forma. E isso foi particularmente agradável de ler. Até porque, não esqueçamos, não são muitos os policiais que podemos encontrar na banda desenhada portuguesa.

A história arranca com a morte, inexplicável e brutal, de Oliveira, um homem solitário e enigmático. E mesmo que parecesse às testemunhas que com Oliveira privaram, que o mesmo não andava muito bem nos últimos tempos, a verdade é que esta morte parece não ter uma explicação plausível, já que não é encontrada nem uma arma nem um culpado evidente. Não parece ser assassinato, nem suicídio. Tudo o que as investigações encontram é apenas o cadáver do homem, um diário e algumas pistas difusas.

O Progresso da Humanidade, de João Sequeira e Rui Cardoso Martins - Polvo
A história constrói-se a partir desse vazio inicial, dessa impossibilidade de compreensão, e vai crescendo com uma cadência muito própria. 

O tom policial da obra é algo que apreciei particularmente. Sentem-se ecos claros de outras obras clássicas da banda desenhada mundial, como Alack Sinner ou Nestor Burma, não apenas na estrutura narrativa, mas sobretudo na forma como o mistério se instala e se prolonga, e no ambiente que nos é dado. Mas, claro, é tudo feito à boa maneira portuguesa ou não fosse esta uma obra com claros com claros laivos políticos subtis, mas bem presentes. O livro começa por, a partir da premissa inicial do "o que é que aconteceu?" divertir-se a adiar respostas, obrigando-nos a desconfiar de tudo e de todos. É daqueles livros que nos fazem franzir a testa e levantar a sobrancelha, antecipando que algo mais fundo e incómodo se aproxima.

O mistério nunca é, pois, um fim em si mesmo, mas antes um motor que nos empurra para camadas mais densas de significado. À medida que avançamos, percebemos que há aqui uma crítica social embutida que supera até a questão da investigação. E tudo é feito com uma boa dose de subtileza e ironia, com a obra a falar de fascismo, de memória, de palavras que tentaram ser limpas à força do dicionário, mas que continuam bem vivas no quotidiano. 

E, claro está, a referência a Santa Comba Dão, localidade berço de António Oliveira Salazar, e até o próprio nome do morto, Oliveira, não é inocente e funciona como mais uma camada de leitura, nunca sublinhada em excesso. O fascismo, aqui, não surge como caricatura histórica, mas como pulsão latente, algo que se traz “no coração”, como escreve Oliveira no seu diário. Esta dimensão política surge integrada na narrativa, sem didatismos, o que a torna ainda mais eficaz e densa.

O Progresso da Humanidade, de João Sequeira e Rui Cardoso Martins - Polvo
O desenho de João Sequeira mantém-se fiel ao estilo que já conhecemos, mas ganha aqui uma especial eficácia na vertente policial da história. O uso de sombras, enquadramentos fechados e silêncios visuais contribui para uma atmosfera pesada, quase sufocante, que acompanha o leitor do início ao fim, num ambiente noir muito bem conseguido por parte do autor. 

Não pude deixar de ser remetido, em vários momentos, para o trabalho do autor argentino Eduardo Risso, sobretudo na forma como os locais e os corpos são representados num traço a preto e branco puro, sem espaço para cinzentos e com as personagens a apresentarem feições caricaturais e guturais. Não se trata de uma imitação, até porque não vemos aqui um João Sequeira a afastar-se do estilo a que já nos habituou, mas, devido ao tom policial da obra, uma afinidade estética evidente, que encaixa como uma luva neste registo mais sombrio e introspectivo. Gostei especialmente.

A articulação entre texto e imagem é, portanto, particularmente feliz. Sequeira sabe quando deixar o desenho falar por si e quando reforçar o impacto das palavras. O ritmo da leitura é controlado com mestria, alternando momentos de tensão com pausas reflexivas que nunca quebram o envolvimento e, até, com algumas partes mais evocativas e poéticas.

Comparando com Espelho da Água e Estômago Animal, parece-me claro que O Progresso da Humanidade é o livro mais sólido da trilogia. Não só pela estrutura sólida e madura do discurso, mas também pela própria história que me deixou bastante agarrado ao livro. Admito que considerei o final da obra algo anti-climático, mas, lá está, este é um livro em que podemos utilizar a velha máxima de que "mais importante que o final, é a jornada em si".

A edição da Polvo é, à semelhança dos outros dois livros da dupla, em capa dura baça, com bom papel baço no miolo. A encadernação e a impressão também são boas. Este livro insere-se na coleção Biblioteca Polvo, na qual, para além de Espelho da Água e Estômago Animal, também se juntam as obras Morro da Favela, de André Diniz, e O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias, de Paulo Monteiro.

No conjunto, O Progresso da Humanidade afirma-se como uma obra profundamente perspicaz, capaz de entreter e provocar pensamento em simultâneo. Num tempo marcado por discursos polarizados e incongruências normalizadas, este livro funciona como espelho desconfortável, mas necessário. É, quanto a mim, o melhor dos três livros que João Sequeira adaptou a partir dos contos de Rui Cardoso Martins, e um dos melhores livros da banda desenhada nacional editada em 2025.


NOTA FINAL (1/10):
8.9

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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O Progresso da Humanidade, de João Sequeira e Rui Cardoso Martins - Polvo

Ficha técnica
O Progresso da Humanidade
Autores: João Sequeira e Rui Cardoso Martins
Editora: Polvo
Páginas: 72, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 17,1 x 24 cm
Lançamento: Outubro de 2025

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