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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Análise: Alice - Edição Especial 25 Anos



Alice – Edição Especial 25 Anos, de Luís Louro
 

Se há coisas bem feitas, do primeiro ao último momento, este Alice – Edição Especial 25 Anos é um desses casos. Olho para esta edição, até, como uma masterclass editorial de como fazer as coisas como devem ser. 

Mas já lá irei. Primeiro, a obra em si. 

Alice foi originalmente lançada em 1995, pela editora ASA e é da autoria do autor Luís Louro. Já na época, com as séries Jim del Mónaco e O Corvo, era um dos autores mais importantes do universo nacional da banda desenhada. Porquê? Porque era único, independente, audaz e muito criativo. Características que ainda hoje detém e que estão, até, mais aprimoradas. 

Como escrevi há umas semanas quando lancei o, para alguns, polémico TOP 15 – As Melhores BD’s portuguesas de sempre, Alice - Na Cidade das Maravilhas figurará sempre na minha “lista de melhores bandas desenhadas portuguesas de sempre”. Foi como que o meu início a autores portugueses de banda desenhada. E que início esse! Trata-se da maior obra de Louro – e esta afirmação é forte porque o autor tem muitas outras obras de sobeja importância – e é um marco na banda desenhada portuguesa. Foi-no na altura do lançamento original. É-o, hoje, 25 anos depois. Sê-lo-á-o amanhã, daqui a outros 25, 50 ou 100 anos. Está escrito na história da banda desenhada nacional. 

Alice
é uma reinterpretação bastante livre do clássico de Lewis Caroll, Alice no País das Maravilhas, e foi, também, um clássico instantâneo da banda desenhada portuguesa. Conta-nos a história de uma prostituta, Alice, que deambulando pela cidade de Lisboa, tenta escapar da sua triste realidade e procurar guarida no embalo dos seus próprios sonhos. E é nesses sonhos, que Lisboa lhe aparece como que numa versão aquática, onde baleias, peixes coloridos e outras criaturas marinhas percorrem as ruas desta cidade submersa . O que é real e o que é onírico? Será possível viver em prole dos nossos sonhos e simplesmente sobreviver amargamente à vida real? São questões que esta obra levanta. Um fantástico livro, com um argumento seco, maduro, cómico, mas com um certa melancolia inerente, por detrás de tantas ancas e mamas voluptuosas. 

Luís Louro consegue neste trabalho uma maturidade e uma poesia que (lhe) são raras. Sou da opinião que esta obra deve ser deixada como está, pois não necessita de ser remexida ou aumentada. Mas, ainda assim, pelo menos em termos de narrativas com um teor mais sério e mais poético, confesso que gostaria muito de ver Luís Louro regressar a algo semelhante a Alice. E isto não é dizer que não gosto, ou que não sou fã, dos outros trabalhos que o autor nos tem dado. Só acho que ele é/seria capaz de fazer um livro mais sério e, consequentemente, mais marcante. Se este Alice é uma obra-prima da bd nacional é porque o autor soube arriscar. 

Voltando ao assunto que levantei no primeiro parágrafo deste texto, o trabalho que a editora Ala dos Livros, que agora publica Alice, encetou, juntamente com Luís Louro, é fantástico e digno de figurar nos manuais, para referências futuras. Então, vamos lá por partes. 

Em primeiro lugar, há que dar o devido reconhecimento à forma como a editora, com excelente sentido de oportunidade, aproveitou o 25º aniversário de Alice. A obra estava totalmente esgotada, não podendo ser encontrada no mercado de bd nacional. Ora, se é considerada uma obra de culto pelos leitores de banda desenhada e se está extinta dos mercados, o que é que se tem que fazer? Lançá-la, pois está claro, provendo a procura da desejada oferta. E fazê-lo pelo 25º aniversário da obra, permite assinalar simbolicamente o relançamento e chegar a mais pessoas. Hoje há leitores com 25 anos que certamente - e a menos que tenham herdado a obra original de algum irmão mais velho ou que a tenham adquirido num qualquer mercado de segunda mão ou sites para o efeito - não tiveram contacto com esta obra obrigatória. Ora, isso acabou. Alice passa a estar disponível para uma nova geração. 

Depois, ainda há outra coisa. A forma como a editora lançou a obra. Tenho a edição original e posso dizer que sempre achei que a obra merecia um objeto físico mais competente e mais nobre. A Ala dos Livros em vez de voltar a fazer impressões iguais às da coleção Estórias de Lisboa, em capa mole, preparou uma versão – aquela que seguramente será a mais presente no mercado nacional – que é impressa em grande formato e que exibe uma capa dura, com uma nova ilustração de capa e excelentes acabamentos a verniz dos peixes que, caprichosamente circundam a figura curvilínea de Alice. Maravilhosa capa. A ilustração da capa original era boa mas prefiro esta. Mais atual e mais vendável. Até a própria contracapa é excelente e aparece executada com charme. A edição apresenta um papel com uma boa gramagem e uma boa qualidade de impressão, em linha com os restantes lançamentos da editora. O novo livro é ainda complementado com um novo prefácio e um posfácio do editor. Ambos, dois textos sentidos que melhoram ainda mais o produto final. Nada parece estar deixado ao acaso. Tudo bem feito. 

E se ficássemos por aqui, eu já estaria satisfeito. A Ala dos Livros, oportuna, lança um livro mítico que estava fora do mercado há uns anos e fá-lo com a qualidade merecida. Excelente! 

Mas não! A editora e o autor foram mais longe! 

E, para além da edição dita “normal”, da qual acabei de falar acima, foi lançada uma edição comemorativa, carregada de muitos mais extras. Esta versão especial apresenta uma nobre capa em tecido azul, com título, nome do autor e ilustrações dos peixes em prateado. Há também uma sobrecapa, com bandanas e um grafismo diferente, que envolve o livro. 

Para além desta apresentação arrojada, o livro em si, abre com um caderno adicional de 16 páginas que são um autêntico tesouro. Em primeiro lugar, temos as 25 perguntas que foram feitas pelos leitores a Luís Louro. Devo confessar que quando vi esta iniciativa a arrancar nas redes sociais, fiquei um pouco cético com ela, pois temi que fosse uma iniciativa que poderia “descambar” se as perguntas (e consequentes respostas do autor) perdessem a seriedade. Mas devo dizer que não havia razão para a minha desconfiança e que fiquei muito surpreendido pela positiva. As 25 perguntas são pertinentes e interessantes e as respostas que Luís Louro lhes dá, são muito esclarecedoras e bem estruturadas. Portanto, considero esta ideia um sucesso. Foi uma boa forma de manter o público engaged e, ao mesmo tempo, dotar esta edição especial de conteúdo muito interessante. 

Mas há mais! Depois desta secção das 25 perguntas, somos contemplados por um conjunto de páginas que nos dão esboços do autor, ideias para organização de páginas e diálogos, anotações, comentários de Luís Louro sobre o processo de fazer a obra. Só ajuda a que o interesse dos leitores seja ainda mais aguçado. Depois há ainda uma página com quatro ilustrações fantásticas. Confesso que não percebi se estas quatro ilustrações eram capas alternativas para a obra ou se eram apenas imagens promocionais. Penso que uma pequena nota explicativa, uma legenda, poderia ter sido útil nesta página. 

Mas ainda há mais uma surpresa! Como se isto tudo não fosse já fantástico, a editora ainda decidiu (pasmem-se!) incluir duas páginas desdobráveis que reproduzem a capa da edição original de 1995 naquela ilustração panorâmica tão marcante! E, por fim, esta edição é ainda numerada, assinada pelo autor e tem o selo branco da editora. Very well done!, como diriam os ingleses. 

Finalmente, e porque, dizem, não há duas sem três, a editora ainda presenteou os interessados com uma terceira hipótese de compra, exclusiva através do website da Ala dos Livros, que consistia num pack de colecionador, composto por um exemplar de cada uma das edições, por uma capa arquivadora que envolve os dois livros e por um fotolito (a uma cor) que deu origem à primeira edição da obra, e que vem acompanhado por um certificado de autenticidade, com reprodução da página à qual esse fotolito corresponde. Felizmente, tive a oportunidade de ter esta edição super-especial e posso dizer que é incrível! 

Apresentadas que estão as várias edições e diferentes formas de adquirir esta obra obrigatória na biblioteca de qualquer amante português de banda desenhada, há uma reflexão que merece ser feita. A forma bem pensada, bem estruturada, bem analisada, bem promovida – com um trabalho de teasing muito bem conseguido nas redes sociais – como esta edição foi preparada pela Ala dos Livros, merece, não só o meu aplauso como, também, que olhemos para esta iniciativa como um exemplo para o futuro. 

Permitam-me que faça uma ponte em relação ao mercado da música, que conheço bastante bem e que é, por vezes, em alguns pontos, semelhante ao mercado da banda desenhada. Quando no final da década de 90 surgiram os primeiros gravadores de cds domésticos, que permitiam que as pessoas fizessem as suas próprias cópias a baixo preço em relação à compra de cds originais, o mercado da música entrou em histeria, achando que iria colapsar abruptamente. Não aconteceu. Passados uns anos, quando as pessoas passaram a fazer downloads grátis, embora ilegais, das músicas das suas bandas favoritas na internet, o mercado voltou a ficar histérico, achando que o seu ganha-pão iria morrer. Não aconteceu. Finalmente, quando surgiram as plataformas de streaming de música, foi publicamente anunciada a morte do lançamento dos cds em formato físico. Também não aconteceu. O que fizeram então as editoras? Simples. Estudaram o mercado, recolheram informações para detetar aquilo que os fãs de música queriam e reuniram esforços no sentido de dar à Procura, a tal Oferta desejada. E foi assim que começaram a surgir versões especiais dos discos. Capas em cartão, versões digipack, cds de bonus tracks, dvd's bónus com entrevistas das bandas, selos de autenticidade, posters dentro dos booklets, que reuniam as letras das músicas e fotos dos músicos nunca antes vistas, etc, etc. Aqui e ali, surgiam ideias novas com base na criatividade de cada editora musical. E, lá está, as editoras começaram a vender muitos discos novamente. Na verdade, talvez os números fossem mais pequenos – por causa da enorme quantidade de fãs que aderiu às plataformas de streaming ou à pirataria – mas o que é certo é que uma franja de mercado foi bem e inteligentemente agarrada pelas editoras, através das chamadas "edições especiais". E mesmo vendendo menos em quantidade, começaram a vender produtos mais caros, com um maior retorno do investimento. O que o mercado soube fazer foi adaptar-se devido a um estudo cuidado do seu público. Perceber o que o público queria e provê-lo com os produtos adequados às suas necessidades e desejos. Os mercados estão cada vez mais partidos, com submercados aqui e ali, e é necessário ser-se inteligente para lhes responder. Um exemplo concreto: os Guns N' Roses, como qualquer outra banda de sucesso, passaram a ter a maioria do seu público nas plataformas digitais de música. Mas isso não quer dizer que uma versão especialíssima comemorativa do seu disco de estreia, Appetite for Destruction, que custava uns incríveis 1.000€(!) não tenha sido vendida e esgotada em tempo record. Porquê? Porque o produto era apelativo e há público predisposto a adquiri-lo. E a Editora soube detetar essa oportunidade. 

E isto tudo para dizer o quê? Que a Ala dos Livros, com este Alice, parece estar a fazer isso. E felizmente não está sozinha. As editoras portuguesas estão, cada vez mais, a oferecer edições de luxo ao mercado português que, mesmo tendo livros com um preço ligeiramente superior a um lançamento em capa mole e sem extras, acabam por ser uma proposta mais apelativa. Já repararam na qualidade da impressão de Roughneck, da G. Floy? Já repararam na qualidade de topo de todas as edições, sem exceção, da Arte de Autor? Já repararam na qualidade de edição dos Lucky Luke que a editora A Seita lançou? Já repararam na qualidade de edição do recente Balada para Sophie, da Tinta da China? Ou mesmo na coleção de novelas gráficas da Levoir que, compreensivelmente, não estando ao nível das edições supramencionadas tem, pelo menos, uma edição de muita qualidade, face ao preço dos seus livros? É por aqui, meus amigos. É por aqui que temos que ir. É este o caminho. 

E a Ala dos Livros que, verdade seja dita, é uma editora que tem primado por uma grande qualidade nas suas edições, com este Alice consegue aumentar e definir (ainda mais) um novo standard de qualidade na edição de banda desenhada em Portugal. E isso merece todo o meu respeito, apoio e admiração. 

Poderão dizer-me: “Então, mas de que vale uma edição luxuosa, com extras e em capa dura, se a obra não prestar?” Ora, isso é óbvio. O que será sempre mais importante é a obra. Isso é o fundamental. Mas a qualidade da edição, do “objeto-livro”, é cada vez mais importante. Não apenas para mim mas para o mercado em geral. É como uma mulher. O mais importante e fundamental é o que está lá dentro, sim. Mas a beleza física exterior também é importante, sejamos sinceros. Ou o mais importante num automóvel é que ande bem e tenha bom motor. Mas também é importante a estética do carro e extras, certo? Na banda desenhada, o mais importante será sempre a qualidade da história e das ilustrações mas, os extras, a edição, a preparação gráfica, tudo isso também conta. 

Alice é uma obra-prima. Mas o tratamento que a obra recebe também é uma obra-prima em termos de edição. Alice é fantástica em qualquer uma das suas versões, sendo demonstrado um grande carinho da Ala dos Livros perante a obra e, talvez ainda mais importante do que isso, um cuidado especial em perceber o que é que os leitores querem, procuram e valorizam. Algo semelhante àquilo que as editoras discográficas têm vindo a fazer no mercado musical, portanto. 

Em conclusão, este é um livro obrigatório. Se já tinhas a edição original, vais querer ter esta nova versão. Se não conheces esta obra fundamental do Luís Louro – e da banda desenhada portuguesa – podes agora remediar essa tua “falha”. A dificuldade maior será mesmo escolher a versão que melhor se adequa a ti. Bendita seja a diversidade de escolha!


NOTA FINAL (1/10): 
9.6 


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Fichas técnicas 
Alice - Na Cidade das Maravilhas - Edição Especial 25 Anos 
Autor: Luís Louro 
Editora: Ala dos Livros 
Lançamento: Novembro de 2020 

Edição normal: 
Páginas: 64, a cores 
Encadernação: Capa dura 


Edição Especial: 
Páginas: 80 páginas, a cores 
Encadernação: Capa em tecido. Sobrecapa

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