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sexta-feira, 14 de maio de 2021

Análise: Os Escorpiões do Deserto – Vol. 3



Os Escorpiões do Deserto – Vol. 3, de Hugo Pratt

A Ala dos Livros prometeu e cumpriu! Está editada em Portugal a coleção integral da série Os Escorpiões do Deserto! No total, são 3 volumes que reúnem as 5 histórias que compõem esta série da autoria do célebre Hugo Pratt. Este terceiro volume, por trazer consigo o conto Brisa de Mar, reveste-se de maior importância ainda, pois esta era uma história que se encontrava inédita em Portugal.

Este é, aliás, o episódio mais longo da série, originalmente publicado em 1992, e traz-nos aquela que, a meu ver, é a história com mais "cabeça, tronco e membros" da série. Talvez para isso contribua a dimensão do episódio que permite explorar melhor a trama que Pratt monta.

Tal como nos volumes anteriores, acompanhamos a demanda de Koinsky que, juntamente, com a secção especial do exército britânico em África, que ficou apelidado como Os Escorpiões do Deserto, encetou várias missões no norte de África com o intuito de recolher informações que permitissem aos Aliados a deteção de movimentos dos inimigos alemães e italianos.

E embora a história se passe durante o período da Segunda Guerra Mundial, difere de todas as histórias, livros e filmes sobre o tema. Tem um estilo muito próprio e muito original, que parece centrar-se nas coisas pequenas na vida dos soldados mas que, subtilmente, nos passa muitas mensagens subliminares, com um cheiro a poesia, tão característico na obra de Pratt, e sabe pintar-nos personagens inesquecíveis, com vários níveis de interpretação.

Aqui temos várias personagens, cada uma delas com as suas próprias aspirações: Koinsky pretende chegar a Dire Dawa; a sensual Brezza quer regressar ao seu bordel Brisa de Mar; Modena, o "soldado-galinha" italiano, procura sobreviver da melhor forma possível; os dois artilheiros indochineses parecem não se sentir "em casa" em nenhum sítio; e Ghula e as suas comparsas, querem ser livres e vingarem-se das injustiças praticadas pelos homens. Cada personagem com os seus intuitos pessoais. Por vezes, quando esses objetivos se encaixam entre si, há uma entreajuda entre as personagens. No entanto, e tal como na vida real, cada um tem o seu próprio caminho individual para percorrer.

Já por altura da análise a Os Escorpiões do Deserto – Vol. 2 escrevi que "num contexto de guerra, aquilo que Hugo Pratt nos dá, são personagens em constante luta individual pela sua sobrevivência. Não é que tenham mau carácter, mas também não são personagens que procuram fazer o bem. Mais do que a intenção de moralismo, Pratt apenas pretende narrar, apresentar e retratar estas personagens que, segundo ele, quase todas tiveram existência real, tendo o autor travado conhecimento com as demais." Pois bem, tudo isso se mantém também neste Brisa de Mar.

Relativamente à arte, que nos é dada a preto e branco, esta é uma obra típica de Pratt, com o seu traço característico e simples, com poucos detalhes, mas que sabe oferecer-nos personagens que, uma vez visualizadas, não mais saem do nosso imaginário. Esse acaba até por ser o grande trunfo do autor, em termos ilustrativos, a meu ver. Como a história é passada em zonas áridas e desérticas, a parte cénica é muitas vezes reduzida a uma só linha que nos demonstra o horizonte tórrido do deserto. Simples – básico até! – mas eficaz. E poético.

Como ponto menos positivo - não só neste Volume 3 como em toda a série - considero que embora os diálogos sejam bastante ricos em termos de verosimilhança, me parece que, muitas vezes, acabam por ser longos demais. Estou certo que muitos fãs de Pratt responderão a esta afirmação dizendo que "é isso que torna as histórias de Pratt maravilhosas". Não negando isso, diria que os diálogos demasiado grandes ou, por outras palavras, ter demasiadas vinhetas em que só vemos as personagens a dialogar entre si, acaba por ser uma opção do autor que não permite à série aproveitar toda a dinâmica que a banda desenhada lhe poderia oferecer. Mas esta é uma questão subjetiva, bem sei. 

Nesse sentido, é natural que se diga que as obras de Pratt são bastante literárias. Diria até que, baseando-se tanto em diálogos, parecem mais próximas de uma  peça de teatro do que de um filme de cinema. E, naturalmente, em teatro, a componente cénica e de ação tem, forçosamente, de ser mais pobre do que em cinema. Assim é a série Os Escorpiões do Deserto – e até mesmo Corto Maltese. Não que haja nada de errado nisso. Repito: é uma questão algo subjetiva. E, por ventura, esta é uma das grandes características que granjeou às obras de Pratt o sucesso que elas têm. Seja como for, e olhando a frio para Os Escorpiões do Deserto, diria que é talvez esta característica que mais faz com que a série seja um pouco datada em relação à banda desenhada mais contemporânea.

Tirando isso, e tendo em conta que os primeiros contos da série comemoram 50 anos, esta é uma verdadeira obra-prima da banda desenhada. E que merece ser lida e respeitada por todos os adeptos da banda desenhada enquanto género. Hugo Pratt traçou linhas próprias e novas, com a sua abordagem à BD.

A edição da Ala dos Livros é soberba. O livro é robusto, graficamente bonito, e apresenta uma boa encadernação e capa dura. O papel é brilhante e de boa gramagem. Na verdade, as páginas têm uma grossura tão generosa que, por vezes, folheamos uma página e parecem que são duas. Mas não, é mesmo apenas uma. Esta sensação deve-se à boa espessura do papel. Como extras, temos ainda, logo no início do livro, 4 páginas a cores, que nos mostram esboços de Pratt, coloridos em aguarelas, e que vêm acompanhados por um texto de apresentação da obra, por parte de Jean-Claude Guilbert. Uma fantástica edição. À semelhança do que fez com a também maravilhosa edição de luxo de Comanche, a editora portuguesa termina com classe mais uma edição integral de um autor incontornável da BD. Parabéns, Ala dos Livros!

Em jeito de conclusão, termino como comecei a minha análise ao segundo volume da série: "falar da obra de banda desenhada de Hugo Pratt é como falar de poesia, aplicada a banda desenhada. Os seus locais. As suas personagens. O que dizem, o que pensam, o que fazem, faz da obra de Pratt algo único. Não dá para imitar a obra de Hugo Pratt... porque não se é Hugo Pratt. Hugo Pratt foi único."


NOTA FINAL (1/10):
9.0



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Ficha técnica
Os Escorpiões do Deserto #3 - Obra Completa
Autor: Hugo Pratt
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 160, a cores e a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Abril de 2021

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