Falar da obra de banda desenhada de Hugo Pratt é como falar de poesia, aplicada a banda desenhada. Os seus locais. As suas personagens. O que dizem, o que pensam, o que fazem, faz da obra de Pratt algo único. Não dá para imitar a obra de Hugo Pratt... porque não se é Hugo Pratt. Hugo Pratt foi único.
E embora o nome do autor esteja quase sempre a associado a Corto Maltese, a verdade é que a sua fantástica criação não se finda em Corto. E prova disto é a série Os Escorpiões do Deserto que, comemora 50 anos de existência e que, em boa hora, a editora Ala dos Livros resolveu publicar numa fantástica versão integral, a preto e branco. Este já é o segundo volume – de um total de três – e traz consigo as histórias Um Fortim em Dancália e Conversa Mundana em Moulhoule.
A narrativa é ambientada em África, durante o período da Segunda Guerra Mundial, e mostra-nos várias individualidades, de fações diferentes, que procuram simplesmente sobreviver. Falar de heróis e vilões em Os Escorpiões do Deserto torna-se irrelevante porque Pratt vai bem além desse binómio de conteúdo.
Se há coisas onde existe uma forte e declarada dualidade é pois na bicromia claramente marcada a preto e branco, sem espaço para cinzentos. Porque, no que à história, às personagens - e suas pretensões - diz respeito, estamos numa grande grey area, como dizem os ingleses. O que até torna mais real esta história. Num contexto de guerra, aquilo que Hugo Pratt nos dá, são personagens em constante luta individual pela sua sobrevivência. Não é que tenham mau carácter, mas também não são personagens que procuram fazer o bem. Mais do que a intenção de moralismo, Pratt apenas pretende narrar, apresentar e retratar estas personagens que, segundo ele, quase todas tiveram existência real, tendo o autor travado conhecimento com as demais. E mesmo sendo no oficial polaco Koinsky que temos o protagonista desta saga, isso não quer dizer que a história seja construída à sua volta. Pelo contrário, até. Porque várias são as vezes onde Koinsky até assume uma posição secundária, face aos eventos decorrentes. E mesmo admitindo que Koinsky não consegue ter o carisma de Corto, considero que é uma personagem muito interessante também. Mas mais interessante do que ele é, consegue ser o Capitão Palchetti. Uma personagem inesquecível, muito cómica, com claros problemas do foro psicológico, que teima em cantarolar árias enquanto comanda soldados!
Também como em Corto Maltese, Os Escorpiões do Deserto apresentam várias personagens de proveniências geográficas diferentes, o que atribui um certo exotismo à obra, nas personalidades e gentes que vão aparecendo em ambas as histórias. Se na primeira história a narrativa parece caminhar para uma apoteose, marcada pela invasão do fortim, no segundo capítulo, Conversa Mundana em Moulhoule, é a paixão que várias personagens parecem nutrir por uma mulher que não é, sequer, dada a conhecer ao leitor, que povoa a narrativa, bem como a aparição marcante do Major Fanfulla.
Do ponto de vista do estudo do trabalho de Pratt na ilustração, uma coisa que me parece verdadeiramente genial é a “racionalidade” do seu traço. Coisa de que raramente se fala. Se olharmos, por exemplo, para a forma como ilustra veículos, mais concretamente, os aviões que aparecem na primeira história deste Os Escorpiões do Deserto, verificaremos que o seu nível de detalhe na caracterização destes objetos é incrível. No entanto, muitas vezes o horizonte do deserto africano pode não ser mais do que um mero traço a preto. Ou as personagens podem ter uma caracterização muito menos detalhada na sua fisionomia e/ou expressões faciais. Porquê? Bem, a meu ver, esta característica de Pratt não será, certamente, por ausência de virtuosismo técnico ou capacidade de desenho mas sim, por opção estético-narrativa. Parece que o autor tem uma certa "economia" de tempo e trabalho na forma como desenha. Se o que interessa é sublinhar uma pequena coisa, então é essa pequena coisa que o autor sublinhará, simplificando toda a restante envolvente ilustrativa. Mesmo que isso implique ser minimalista, de vez em quando. Embora o autor seja famoso pela forma como aplica as aguarelas aos seus desenhos, acho que a sua arte funciona muito bem só a preto e branco. Parecendo até, mais “moderna”, se é que me faço entender. Por outras palavras, parece-me que a sua obra “envelhece” melhor a preto e branco, do que a cores. E já na série a preto e branco de Corto Maltese, que a editora Arte de Autor tem vindo a publicar, fico com a mesma ideia.
De facto, é quando nos salta à lembrança que, afinal, esta obra está a comemorar 50 anos de existência que o fascínio e admiração por Hugo Pratt mais se faz sentir. Aceito que me digam que alguns elementos na obra de Pratt, podem já acusar alguma idade e estarem obsoletos, como certos desenhos, certos planos utilizados e algumas expressões faciais. Mas, meus caros, isto foi feito há dezenas de anos! E tendo em conta esse pequeno – grande! - pormenor, estamos perante uma obra que era vanguardista e que abriu territórios inexplorados na banda desenhada. E, portanto, é compreensível que Hugo Pratt seja um nome incontornável da banda desenhada.
Na minha opinião, parece-me que é nas cenas onde há mais ação que o trabalho de Pratt mais acusa a sua idade, pois nem sempre a sequência entre os planos de ação me parece tão bem conseguida. Quando aplicada aos standards de hoje em dia, claro está. Será nos diálogos – e nas coisas que ficam por dizer – e, também, nas cenas que colocam o leitor a pensar, onde a obra de Hugo Pratt menos parece envelhecer. Está como nova, na verdade.
A edição da Ala dos Livros é uma maravilha. Tem uma capa magnífica, perfeita, com verniz aplicado na personagem de Koinsky. Daquelas capas que já são meio caminho andado para que um potencial interessado no livro o queira segurar nas mãos e adquiri-lo. O papel é de qualidade máxima, boa espessura e a dimensão do livro é em grande formato. Como extras, temos ilustrações de Pratt, a cores, e textos que contextualizam a obra de Pratt. Um livro impecável, muito bem preparado pela Ala dos Livros, e que se assume como totalmente recomendável para admiradores do autor. E não só, toda a gente deveria conhecer esta série Os Escorpiões do Deserto!
NOTA FINAL (1/10):
9.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Os Escorpiões do Deserto - Obra Completa – Volume 2
Autor: Hugo Pratt
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 112 páginas, a preto e branco (incluindo algumas páginas a cores)
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Setembro de 2020
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