terça-feira, 27 de outubro de 2020

Análise: Os Escorpiões do Deserto – Vol. 2

Os Escorpiões do Deserto – Vol. 2


Os Escorpiões do Deserto – Vol. 2
Os Escorpiões do Deserto – Vol. 2, de Hugo Pratt 

Falar da obra de banda desenhada de Hugo Pratt é como falar de poesia, aplicada a banda desenhada. Os seus locais. As suas personagens. O que dizem, o que pensam, o que fazem, faz da obra de Pratt algo único. Não dá para imitar a obra de Hugo Pratt... porque não se é Hugo Pratt. Hugo Pratt foi único. 

E embora o nome do autor esteja quase sempre a associado a Corto Maltese, a verdade é que a sua fantástica criação não se finda em Corto. E prova disto é a série Os Escorpiões do Deserto que, comemora 50 anos de existência e que, em boa hora, a editora Ala dos Livros resolveu publicar numa fantástica versão integral, a preto e branco. Este já é o segundo volume – de um total de três – e traz consigo as histórias Um Fortim em Dancália e Conversa Mundana em Moulhoule

A narrativa é ambientada em África, durante o período da Segunda Guerra Mundial, e mostra-nos várias individualidades, de fações diferentes, que procuram simplesmente sobreviver. Falar de heróis e vilões em Os Escorpiões do Deserto torna-se irrelevante porque Pratt vai bem além desse binómio de conteúdo. 

Os Escorpiões do Deserto – Vol. 2
Se há coisas onde existe uma forte e declarada dualidade é pois na bicromia claramente marcada a preto e branco, sem espaço para cinzentos. Porque, no que à história, às personagens - e suas pretensões - diz respeito, estamos numa grande grey area, como dizem os ingleses. O que até torna mais real esta história. Num contexto de guerra, aquilo que Hugo Pratt nos dá, são personagens em constante luta individual pela sua sobrevivência. Não é que tenham mau carácter, mas também não são personagens que procuram fazer o bem. Mais do que a intenção de moralismo, Pratt apenas pretende narrar, apresentar e retratar estas personagens que, segundo ele, quase todas tiveram existência real, tendo o autor travado conhecimento com as demais. E mesmo sendo no oficial polaco Koinsky que temos o protagonista desta saga, isso não quer dizer que a história seja construída à sua volta. Pelo contrário, até. Porque várias são as vezes onde Koinsky até assume uma posição secundária, face aos eventos decorrentes. E mesmo admitindo que Koinsky não consegue ter o carisma de Corto, considero que é uma personagem muito interessante também. Mas mais interessante do que ele é, consegue ser o Capitão Palchetti. Uma personagem inesquecível, muito cómica, com claros problemas do foro psicológico, que teima em cantarolar árias enquanto comanda soldados! 

Os Escorpiões do Deserto – Vol. 2
Também como em Corto Maltese, Os Escorpiões do Deserto apresentam várias personagens de proveniências geográficas diferentes, o que atribui um certo exotismo à obra, nas personalidades e gentes que vão aparecendo em ambas as histórias. Se na primeira história a narrativa parece caminhar para uma apoteose, marcada pela invasão do fortim, no segundo capítulo, Conversa Mundana em Moulhoule, é a paixão que várias personagens parecem nutrir por uma mulher que não é, sequer, dada a conhecer ao leitor, que povoa a narrativa, bem como a aparição marcante do Major Fanfulla. 

Do ponto de vista do estudo do trabalho de Pratt na ilustração, uma coisa que me parece verdadeiramente genial é a “racionalidade” do seu traço. Coisa de que raramente se fala. Se olharmos, por exemplo, para a forma como ilustra veículos, mais concretamente, os aviões que aparecem na primeira história deste Os Escorpiões do Deserto, verificaremos que o seu nível de detalhe na caracterização destes objetos é incrível. No entanto, muitas vezes o horizonte do deserto africano pode não ser mais do que um mero traço a preto. Ou as personagens podem ter uma caracterização muito menos detalhada na sua fisionomia e/ou expressões faciais. Porquê? Bem, a meu ver, esta característica de Pratt não será, certamente, por ausência de virtuosismo técnico ou capacidade de desenho mas sim, por opção estético-narrativa. Parece que o autor tem uma certa "economia" de tempo e trabalho na forma como desenha. Se o que interessa é sublinhar uma pequena coisa, então é essa pequena coisa que o autor sublinhará, simplificando toda a restante envolvente ilustrativa. Mesmo que isso implique ser minimalista, de vez em quando. Embora o autor seja famoso pela forma como aplica as aguarelas aos seus desenhos, acho que a sua arte funciona muito bem só a preto e branco. Parecendo até, mais “moderna”, se é que me faço entender. Por outras palavras, parece-me que a sua obra “envelhece” melhor a preto e branco, do que a cores. E já na série a preto e branco de Corto Maltese, que a editora Arte de Autor tem vindo a publicar, fico com a mesma ideia. 

Os Escorpiões do Deserto – Vol. 2
De facto, é quando nos salta à lembrança que, afinal, esta obra está a comemorar 50 anos de existência que o fascínio e admiração por Hugo Pratt mais se faz sentir. Aceito que me digam que alguns elementos na obra de Pratt, podem já acusar alguma idade e estarem obsoletos, como certos desenhos, certos planos utilizados e algumas expressões faciais. Mas, meus caros, isto foi feito há dezenas de anos! E tendo em conta esse pequeno – grande! - pormenor, estamos perante uma obra que era vanguardista e que abriu territórios inexplorados na banda desenhada. E, portanto, é compreensível que Hugo Pratt seja um nome incontornável da banda desenhada. 

Na minha opinião, parece-me que é nas cenas onde há mais ação que o trabalho de Pratt mais acusa a sua idade, pois nem sempre a sequência entre os planos de ação me parece tão bem conseguida. Quando aplicada aos standards de hoje em dia, claro está. Será nos diálogos – e nas coisas que ficam por dizer – e, também, nas cenas que colocam o leitor a pensar, onde a obra de Hugo Pratt menos parece envelhecer. Está como nova, na verdade. 

A edição da Ala dos Livros é uma maravilha. Tem uma capa magnífica, perfeita, com verniz aplicado na personagem de Koinsky. Daquelas capas que já são meio caminho andado para que um potencial interessado no livro o queira segurar nas mãos e adquiri-lo. O papel é de qualidade máxima, boa espessura e a dimensão do livro é em grande formato. Como extras, temos ilustrações de Pratt, a cores, e textos que contextualizam a obra de Pratt. Um livro impecável, muito bem preparado pela Ala dos Livros, e que se assume como totalmente recomendável para admiradores do autor. E não só, toda a gente deveria conhecer esta série Os Escorpiões do Deserto


NOTA FINAL (1/10): 
9.0 


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Os Escorpiões do Deserto – Vol. 2
Ficha técnica 
Os Escorpiões do Deserto - Obra Completa – Volume 2 
Autor: Hugo Pratt 
Editora: Ala dos Livros 
Páginas: 112 páginas, a preto e branco (incluindo algumas páginas a cores) 
Encadernação: Capa dura 
Lançamento: Setembro de 2020

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