Preconceitos.
Todos os temos. E quando me refiro a preconceitos, não me refiro apenas à conotação mais negativa que a palavra normalmente acarreta. Porque, se formos à raiz etimológica da palavra, “preconceito” até não tem que ser algo mau. É apenas um “pré-conceito” que temos de algo. Muitas vezes está errado porque podemos ter um “pré-conceito” de alguma coisa, que não corresponde à verdade. Seja positivo ou negativo. Falam-me que abriu uma nova hamburgueria de um famoso chef português e o meu “pré-conceito” pode ser positivo: “Uau, quase de certeza que esses hamburgers são ótimos”. E depois os hamburgers até podem não ser nada de especial, não correspondendo ao meu “pré-conceito”. E pode, paradoxalmente, alguém dizer-me que há uns hamburgers espetaculares numa qualquer roulotte com um aspeto suspeito e eu, automaticamente, achar: “devem ser hamburgers péssimos e carregados de óleo” e depois, ter uma agradável surpresa. Que é como quem diz: quem vê caras não vê corações.
E tudo isto para dizer que eu tinha um “pré-conceito” em relação a O Árabe do Futuro. E não é que fosse algo especificamente negativo da minha parte. Simplesmente parecia que a obra não me apelava. Já tinha tido a obra nas mãos inúmeras vezes, folheando-a enquanto pensava se havia, ou não, de a comprar, mas o meu “pré-conceito” falava sempre mais alto e foi um livro que, sistematicamente, eu acabava por não conhecer. Mas agora que li pela primeira vez esta obra, mais propriamente o Volume 4, que a editora Teorema acaba de editar, só posso lamentar por ter demorado tanto a mergulhar nesta obra espetacular!
Mas primeiro analisemos as razões do meu “pré-conceito”. Do meu preconceito. Nunca achei que as capas de O Árabe do Futuro fossem boas. Parece-me até, sinceramente, que o autor aparenta ter graves problemas na projeção de uma capa. Os elementos parecem desorganizados e não transparecem minimamente a boa capacidade de ilustrador do autor. O próprio nome da obra não me cativava e a edição em capa mole também não ajudava. Quando folheava o livro, percebia o registo, bastante cartoonished e agradável da obra, mas algo não me prendia a ela.
Mas agora que li – e devorei! – este livro posso dizer que, mesmo sendo verdade que a obra mereceria uma melhor capa e uma edição em capa dura, o meu preconceito só me estava a impedir, sem grande razão, de conhecer uma fantástica história em banda desenhada.
Esta é uma saga auto-biográfica que, como já referi, já vai no quarto volume e em que o protagonista, que é também o autor do livro, nos conta os seus primeiros anos de vida. Se nos primeiros três tomos, Riad Sattouf nos conta a sua história até aos seus 9 anos de idade, neste quarto tomo, narra-nos o período de entrada na adolescência, com tudo o que isso pressupõe; quer no melhor entendimento dos adultos; quer no despertar para paixões pelo sexo oposto; quer nos anos conturbados de escola, especialmente quando se é vítima de bullying constante; ou quer no fascínio pelos videojogos – que, no início dos anos 90 estavam a começar em força. E a toda esta equação instável se juntam os confrontos, cada vez mais crescentes, entre o seu pai (de origem líbia) e a sua mãe (de origem francesa). Há, portanto, uma crítica social sempre presente embora o autor não pareça extremar muito as suas posições, limitando-se a narrar os acontecimentos. É o leitor que acaba por tirar as suas conclusões com as “cartas” que são dadas. A oposição Ocidente vs Oriente está constantemente presente.
É impossível não firmar uma relação entre leitores e personagens. Se o pai de Riad nos faz rir muitas vezes, com os seus exageros e com a forma como reage a várias situações, também é verdade que sentimos um misto de emoções por ele, pois parece que, gradualmente, as suas convicções algo perigosas e radicais face ao mundo ocidental, começam a ganhar força e acabamos por não gostar assim tanto desta personagem. Mas, por outro lado, repito, também gostamos dele! Ou seja, é criada uma dicotomia brilhante e verdadeiramente real. Tal como na vida real, as pessoas não são uni-dimensionais e, portanto, estão povoadas de qualidades e defeitos. Assim são os pais de Riad. Especialmente o seu pai. E é maravilhosa a forma como o autor, numa banda desenhada que aparenta ser tão divertida e descomplexada, consegue este feito.
A dicotomia também fica presente na afirmação do protagonista enquanto indivíduo: o jovem protagonista parece eternamente dividido entre a cultura do pai e a cultura da mãe. Quando está junto dos muçulmanos, estes estranham os seus comportamentos, levando-o a não se sentir como parte deles. Por outro lado, quando está junto dos franceses, estes acham-no estranho e ostracizam-no, particularmente na escola.
Outra coisa que achei brilhante e que, de certa forma, me arrebatou foi que este é um “falso" livro cómico. Sim, é verdade que vamos rir várias vezes, pois o autor sabe ilustrar muito bem as situações e expressões das personagens, de forma a deixarem o leitor com um sorriso na cara. A própria personalidade do protagonista na sua adolescência lembrou-me uma personagem que me é muito querida, das minhas leituras juvenis, que é Adrian Mole, criado por Sue Townsend, que tanto marcou a minha juventude com as suas tiradas cómicas, satíricas e com uma consciência de si mesmo, tão divertida e irónica. Mas, à medida que O Árabe do Futuro 4 vai avançando, as coisas vão deixando de ter tanta piada porque começamos a ver que esta família caminha invariavelmente para uma rutura. E isso é triste. E real. E arrebatador.
Estão a ver aquele vosso amigo que tem sempre piada, mesmo quando conta histórias tristes? Riad Sattouf é uma dessas pessoas. Se olharmos com olhos de ver para O Árabe do Futuro, veremos que é uma obra triste e adulta, contada de uma forma divertida e, aparentemente, descontraída.
E o final, sem o estragar aos que me lêem, posso dizer que é dos melhores e mais fortes cliffhangers que já li em banda desenhada. Se houve alturas em que eu manifestei preocupação pela história e pelas personagens enquanto exclamava: “Oh meu Deus! E agora?”, esta foi uma dessas ocasiões. Arrebatador!
Em termos de arte, como já referi, o autor oferece-nos um estilo bastante "cartoonizado" e simples, que sabe dosear muito bem as cores, de forma a dramatizar com a quantidade certa, as várias situações que vão sucedendo ao protagonista e os locais por onde o mesmo vai passando. Quando está em França, são os tons azulados que predominam, mas quando a família Sattouf está na Síria ou na Líbia, são os tons avermelhados a serem usados. Gosto também que o autor faça pequenas anotações ao lado das personagens – e fora dos balões de diálogo – que ajudam a incrementar uma ideia ou uma piada.
A edição da Teorema apresenta um papel de uma excelente gramagem que enaltece a obra. Ainda assim, e como já referi, lamento que a capa seja mole.
No final, a minha conclusão é que esta é uma obra fantástica! História pertinente, bem narrada, bem ilustrada e que nos vai prendendo às personagens. Se estive muitos anos cético quanto a ela, fiz mal por ceder ao meu preconceito! Este 4º livro vai-me obrigar a querer ler toda a saga, desde o início. Super recomendado!
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Árabe do Futuro 4: Ser Jovem no Médio Oriente (1987-1992)
Autor: Riad Sattouf
Editora: Teorema
Páginas: 280, a cores
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Maio de 2020
Viva Hugo, esta é uma série que sigo desde o início (em francês...) e sempre admirei a sagaz fórmula que o autor usa, sob a capa de um humor inteligente e refinado, para expor as contradições, paradoxos e incompatibilidades do valores ocidentais e das sociedades muçulmanas, neste caso síria. Dito isto o lançamento desta série por cá foi tudo menos linear - espaços longos entre edições, disparidades na balonagem, incongruências na reprodução de cores, etc... Actualmente, quem quiser adquirir toda a série irá ter sérios problemas porque os volumes iniciais estão fora de catálogo (teria sido de bom tom a Teorema ter aproveitado para repô-los, mas não...) - um incentivo a menos para aquisição deste volume. Outra situação que detectei quando pretendi adquirir este volume na Feira do Livro de Lisboa foram 2 cadernos afectados pela humidade (enfolados...) e todos os exemplares estavam assim. Espero que a restante tiragem não sofra do mesmo problema, talvez o Hugo me possa confirmar....
ResponderEliminarCaro António, obrigado pelo seu comentário, muito informativo e interessante. Sim, confirmo que está a ser difícil encontrar os restantes volumes. A reposição talvez pudesse ter sido uma ação pertinente. Quanto ao problema da humidade que refere, posso afirmar que o meu exemplar não padece de tal problema. Posto isto, acredito que os exemplares na Feira do Livro talvez tenham sido submetidos a alguma humidade ou mal acondicionados. Na loja, encontrará o livro sem esse problema.
ResponderEliminarViva Hugo. A quem possa interessar, passei não dia 16 de Outubro na FNAC do Chiado e todos os exemplares do Vol.4 do Árabe do Futuro apresentavam marcas de humidade/água em, pelo menos, um dos cadernos, ou seja papel enfolado. Se tiverem oportunidade, reclamem junto da editora. Obrigado
ResponderEliminarObrigado pela informação, caro António.
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