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quarta-feira, 27 de julho de 2022

Análise: Le Petit Frère

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman
Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp

Há um conjunto de momentos na perda de alguém próximo que são de uma força enorme, devastadora e angustiante, e que não mais nos largam ao longo da nossa vida. E depois, já mesmo quando passaram muitos anos desde essa morte, ainda conseguimos vivenciar todos os momentos que compuseram esse trágico acontecimento, tal como se apenas tivessem passado dois ou três dias: a forma como soubemos que alguém estava à beira da morte, a forma como soubemos que esse alguém tinha mesmo morrido, o que sentimos na altura, quem estava lá a partilhar esse momento connosco, o funeral, as mensagens, as flores, os dias seguintes. Tudo aquilo que compõe, portanto, aquele momento em que o “tapete” nos é tirado e acabamos por ter uma enorme queda emocional. Que se arrasta por meses. Por anos.

Le Petit Frère dá-nos, num relato autobiográfico, tudo isso, mas com uma agravante: estamos perante a história real de uma criança de 11 anos, o membro mais novo de uma família, cuja vida é ceifada por um violento acidente automóvel. Conseguem imaginar? Já há muito tempo que um livro não me partia o coração desta maneira. Foram várias as vezes, ao longo destas mais de 300 páginas, que o nó na garganta se me instalou e as lágrimas acabaram por me inundar os olhos.

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman
Jean-Louis Tripp, autor, juntamente com Régis Loisel, de Armazém Central, uma das séries da minha vida, conta-nos a história biográfica sobre a forma como perdeu o seu irmão mais novo, Gilles. E posso dizer-vos: a leitura deste livro é de uma força e de uma tristeza tal, que senti que o meu coração foi arrancado do seu lugar, pontapeado e esmurrado e depois devolvido ao seu local original. O Relatório de Brodeck, de Manu Larcenet, essa magnífica e pesada obra-prima da bd, parece uma história dos Ursinhos Carinhosos, quando comparada, pelo menos em termos de intensidade dramática, com este Le Petit Frère. É preciso estômago para ler este livro, aviso já.

Le Petit Frère começa praticamente com a morte do pequeno Gilles. Era o verão de 1976 e Jean-Louis, de 18 anos, encontrava-se de férias na Bretanha, com a sua família. Sem que Jean-Louis – ou alguém - o pudesse prever, ao soltar a mão do seu irmão mais novo, este acaba por ser violentamente atropelado por um carro que, lamentavelmente, opta por fugir após o embate. Ora, nos anos 70 não tínhamos telemóveis e, tendo em conta que a família se deslocava em caravanas puxadas a cavalo, bem como que este acidente aconteceu no meio do nada, o pequeno Gilles perdeu muito sangue enquanto aguardava pela assistência médica. Todos tiveram que esperar por uma ambulância num longo período de tempo que parece ter demorado horas. Eventualmente, e já no hospital, a família é confrontada com o dramático anúncio: Gilles perdera a vida. Esse pequeno momento de soltar a mão do seu irmão, que acabou por ser fatídico para Gilles, acabou por perseguir Jean-Louis Tripp ao longo de toda a sua vida.

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman
Tripp vai ao pormenor, cobrindo cada um dos pequenos momentos vividos ao longo dos dias que circundam a morte do seu irmão, Gilles. Aliás, prova disso é que o momento do acidente que envolve o seu irmão se dá na página 17 e é só na página 150 que tem lugar o funeral do seu irmão. Portanto, são inúmeras as pranchas onde vemos personagens a chorar fortemente, abraçadas umas às outras ou em pleno choque emocional. São desenhos que falam por si e que trazem uma forte aura de drama e tristeza à obra.

O autor narra-nos com minúcia os anos que se seguem: a raiva, a sensação de injustiça, o luto. Tudo muito difícil de ultrapassar. Como encontrar algum sentido após a morte de uma criança e de uma forma tão violenta, ainda por cima? E, claro, o sentimento de culpa também parece perseguir o narrador. Se ele não tivesse largado a mão do seu irmão, a tragédia não teria acontecido? Também o processo judicial face ao motorista culpado - que fora rapidamente descoberto pelas autoridades - ou o início de carreira de Jean-Louis enquanto artista de banda desenhada, na revista Métal Hurlant, estão documentados pelo autor.

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman
Se há algo que posso criticar de forma menos positiva é que, enquanto lia a obra, fiquei com a ideia que a mesma poderia ser contada em 200 páginas, em vez de 344 páginas. Com efeito, até me pareceu que Jean-Louis Tripp estava a “puxar a barra” dramática em demasia. Às tantas eu já sentia: “homem, pára de me deprimir com esta história”! Mas isso foi uma injustiça da minha parte. Porque ao ler este livro na íntegra, também eu tive que regressar à maior perda que tive nesta vida – a do meu pai – para relembrar que o drama não é exagerado. O drama é real e vive-se durante uma vida, até. E então percebi que o próprio Jean-Louis Tripp há-de ter tido com esta obra uma certa redenção para a sua vida. Com um resultado quiçá terapêutico. Uma forma de sarar – se tal for possível – esta enorme ferida.

Assim, e por essa razão, não me parece ser justo afirmar que o autor faz “render o peixe” ou que explora em demasia este evento da sua vida. Há, aliás, um sentido de profundidade e sinceridade que nos toca no nosso âmago. Ao leitor acaba por ser dada a possibilidade de experienciar algo real e tremendamente trágico que o próprio Tripp viveu durante a sua vida e que, estou certo, continua a atormentá-lo. E a feitura deste livro é, afinal, uma forma de tornar eterno o pequeno Gilles que, com apenas 11 anos, teve o azar de estar no sítio errado, à hora errada e com isso destruir o universo de toda a sua família. 

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman
Tenho que afirmar que, tirando o brilhante Armazém Central, eu não tinha lido mais nada deste autor. E digo-vos: que fantástico autor-completo é Jean-Louis Tripp! Está, segundo os meus padrões, confirmado como um autor brilhante. Depois deste Le Petit Frère, tenho que dizer que estou muito curioso por ler Extases, onde o autor se despe de preconceitos acerca de temas relacionados com a sexualidade numa autobiografia.

Mas, voltando a Le Petit Frère, visualmente, o autor oferece-nos um livro com desenhos que, mesmo ilustrando situações terríveis como a dor, o luto e a tristeza infindável, conseguem ser muito bonitos e visualmente apelativos. Os leitores que conhecem Armazém Central encontrarão, aqui e ali, algumas semelhanças com os desenhos dessa série – especialmente nos cortes de cabelo de algumas personagens e em algumas expressões faciais – mas, tal como já disse noutros artigos, Armazém Central parece ter sido desenhado por uma outra pessoa que não Loisel e não Tripp. As semelhanças com os desenhos de ambos os autores estão lá, obviamente, mas numa mistura diferente ainda assim. Como se ambos os autores tivessem criado, por fusão, um novo autor.

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman
Posto isto, e voltando novamente a Le Petit Frère, posso dizer que os desenhos expressam de forma inequívoca a dor, a devastação emocional e a deformação do momento que a própria história nos oferece. As cores são quase sempre em tons de sépia embora sejam entrecortadas por algumas cenas em cores mais vivas que tentam apontar a história e o autor no sentido da luz. Da bonança após a tempestade. Do otimismo e da redenção.

A edição da Casterman é em capa mole e em papel baço, com boa gramagem. Tenho que dizer que, sendo o livro bastante grosso, por mais que seja o cuidado que temos no manuseamento do livro, a lombada do mesmo acaba por estar sempre um pouco danificada quando chegamos ao final da leitura. Com aquele habitual vinco na lombada. É uma pena e acho que o livro merecia capa dura. Porém, também é verdade que, pela tal razão de ser em capa mole, o preço do livro em França, de 28€, é bastante simpático para uma obra a cores e com mais de 300 páginas. Opções editoriais, portanto.

No fim, o meu pensamento é apenas este: quanto tempo passará até que uma editora portuguesa aposte neste livro maravilhoso? Esta obra traz consigo uma das leituras mais comoventes e emocionantes que fiz nos últimos anos e que, indubitavelmente, merece ser publicada por cá. Sei que o tamanho do livro é grande, o que poderá trazer consigo custos avultados e consequentes receios das editoras portuguesas. Mas é um livro demasiado bom para que a aposta não seja feita. Formidável!


NOTA FINAL (1/10):
9.8


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica
Le Petit Frère
Autor: Jean-Louis Tripp
Editora: Casterman (edição francesa, original)
Páginas: 344, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 20 x 26,3 cms
Lançamento: Maio de 2022

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