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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Análise: Farsa de Inês Pereira

Farsa de Inês Pereira, de André Morgado e Jefferson Costa - Levoir - RTP

Farsa de Inês Pereira, de André Morgado e Jefferson Costa - Levoir - RTP
Farsa de Inês Pereira, de André Morgado e Jefferson Costa

A adaptação para banda desenhada da peça de teatro Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, corresponde ao segundo livro da coleção Clássicos da Literatura Portuguesa, que a editora Levoir tem vindo a lançar conjuntamente com a RTP.

Os autores responsáveis pela adaptação para BD deste clássico escrito em 1523 pelo mais famoso dramaturgo português, são o português André Morgado e o brasileiro Jefferson Costa. E digo-vos, desde já, que esta parceria intercontinental parece ter resultado em pleno, pois o resultado desta adaptação agradou-me bastante. Se, em Mensagem, referi que a junção de Pedro Vieira de Moura e Susa Monteiro tinha sido uma boa ideia, neste caso também tenho de admitir que André Morgado consegue, por um lado, recuperar o humor, pleno de sátira, de Gil Vicente, enquanto que Jefferson Costa, com o seu traço (aparentemente) tosco, mas belo, dá vida às personagens de forma orgânica e convincente.

Farsa de Inês Pereira, de André Morgado e Jefferson Costa - Levoir - RTP
Escrita no período do Renascimento, a Farsa de Inês Pereira - bem como qualquer outro trabalho de Gil Vicente - é um retrato, nu e cru, da sociedade renascentista portuguesa, funcionando como se de um frame congelado no tempo se tratasse. Um fóssil histórico-social, portanto. E o mais saboroso e demais lusitano, diria, é que os traços que caracterizavam os nossos antepassados portugueses há mais de 500 anos, continuam bem presentes na sociedade portuguesa nos dias de hoje.

A história gira em torno de Inês Pereira, uma mulher preguiçosa e vaidosa que, sentindo tédio por estar em casa, sonha em casar-se para almejar uma vida melhor. E, por vida melhor, Inês não deseja propriamente um casamento com um homem rico, mas sim com alguém que seja sedutor… que seja sofisticado, que lhe faça as vontades. Recusando o interesse de um rapaz de natureza simples e rude, Inês acaba por se casar com um homem galã, de aparentes boas maneiras e de palavras caras. Parece ser o “match” perfeito para a protagonista!

E, a partir daí, são várias as situações cómicas e divertidas que vão desfilando perante nós. Gil Vicente era um génio na forma como conseguia veicular as suas ideias impregnadas dos valores e moral certos - pelo menos, à época - através de personagens estereotipadas. Por ventura, e à luz dos dias de hoje, estereotipadas de uma forma demasiado unidimensional, temos que admitir. No entanto, estes textos foram escritos há 500 anos, e, mesmo passado tanto tempo, ainda fazem sentido nos dias da atualidade. 

Farsa de Inês Pereira, de André Morgado e Jefferson Costa - Levoir - RTP
Inês Pereira é o claro e clássico exemplo da mulher preguiçosa e ingénua, que é facilmente enganada pela promessa de uma vida fácil. O seu marido é um perfeito “brutamontes” que exerce toda a sua força machista e viril sobre a sua esposa que, para ele, não é mais do que um objeto de posse; enquanto que o primeiro pretendente de Inês é aquilo a que, na gíria, chamamos de bom e velho “banana”. Passaram-se séculos e até me atrevo a dizer-vos, numa nota pessoal, que, quando olho à minha volta, vejo que esta última estirpe dos “bananas” se tem solidificado nos tempos atuais. De qualquer maneira, é preferível que haja mais "bananas" do que "brutamontes". Disso, não haja a menor dúvida. Mas avancemos.

A peça também apresenta críticas sociais e morais, destacando a importância do trabalho diligente e honesto, em contraste com a ociosidade e a busca por riqueza fácil. Gil Vicente usa o humor e a sátira para explorar temas como a vaidade, a ganância e as ilusões da sociedade da sua época.

Ao contrário daquilo que João Miguel Lameiras fez na sua adaptação de outra conhecida obra de Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno - que, com desenhos de Joana Afonso, também recebeu uma adaptação para banda desenhada - em que o texto original da peça foi mantido, neste Farsa de Inês Pereira, André Morgado optou por adaptar a linguagem aos tempos atuais. A meu ver, ambas as opções são válidas. Por um lado, considero que manter o texto original é uma decisão que joga mais pelo seguro. Mas também é verdade que o resultado final desta opção corre o risco de apresentar um texto demasiado arcaico para o público atual – e, no caso da obra de Gil Vicente, com um português já tão afastado do português que hoje em dia utilizamos, isso é mais premente. Por outro lado, e tendo em conta que se trata de uma obra de sobeja relevância, também há o risco de, adaptando o texto para o português atual, se “estragar” a obra, desvirtuando-a e arruinando os seus intentos.

Farsa de Inês Pereira, de André Morgado e Jefferson Costa - Levoir - RTP
Mas - e, lá está, como em tudo na vida - há sempre o lado bom e mau para qualquer coisa e, com efeito, adaptando o texto original para um texto mais atual, funcionando bem, pode ser uma lufada de ar fresco e um novo modo de modernizar a obra, levando-a, com mais facilidade, a um público que, de outra forma, poderia não pegar na mesma. Felizmente, parece-me que foi isto que André Morgado fez. Arriscou e saiu-se bem nessa empreitada. Os diálogos parecem-me bem pensados, os momentos mais relevantes da obra original são mantidos e há um ritmo narrativo que funciona bem em banda desenhada.

É verdade que, dirão os puristas, esta hipótese deixa que caia por terra a riqueza histórica e tradicional da parte linguística da obra original. Mas, em oposição a isso, também fica mais “digerível” para os jovens que pegarão neste livro como complemento à leitura da obra original. Nesta questão mantenho-me, portanto, neutro. Há vantagens e desvantagens. E o que mais interessa, pelo menos na minha opinião, é que, de uma forma ou de outra, o livro acabe por funcionar bem. Como é o caso deste Farsa de Inês Pereira.

Farsa de Inês Pereira, de André Morgado e Jefferson Costa - Levoir - RTP
Quanto ao trabalho de Jefferson Costa, que eu só conhecia dos trabalhos feitos para as Graphic MSP, para a personagem da Turma da Mónica, Jeremias, devo dizer que corresponde muito bem àquilo que Farsa de Inês Pereira pedia. O autor apresenta um traço rápido e sujo, que transpira segurança e que, mesmo sendo um estilo de desenho “cartoonesco”, que aparenta ser urgente e genuíno na forma e no output final, consegue criar personagens memoráveis e ter um dinamismo muito interessante. Em certa medida, e sempre com as devidas distâncias, lembrou-me do trabalho do autor português Jorge Miguel no seu O Fado Ilustrado.

A edição da Levoir mantém-se em linha com o expetável: capa dura baça, boa encadernação, boa impressão e bom papel no miolo. Temos, novamente, um bom dossier de extras sobre a vida e obra de Gil Vicente, aumentando o cariz didático da proposta editorial.

Em suma, esta nova coleção da Levoir parece navegar para bom porto, já que este Farsa de Inês Pereira consegue ser uma boa proposta de leitura e, em somatório, uma possível porta de entrada na banda desenhada por parte de um público menos habituado às lides da 9ª arte.


NOTA FINAL (1/10):
8.0



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Farsa de Inês Pereira, de André Morgado e Jefferson Costa - Levoir - RTP

Ficha técnica
Farsa de Inês Pereira
Autores: André Morgado e Jefferson Costa
Adaptação a partir da obra original de: Gil Vicente
Editora: Levoir
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Fevereiro de 2024

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