Assim de caras, e com alguma facilidade, diria, Auto da Barca do Inferno, que fechou a série dos Clássicos da Literatura em BD, que a Levoir lançou em parceria com a RTP, é o melhor livro de toda a coleção. Mas de caras, mesmo!
Começo até por dizer que, infelizmente, o nível médio qualitativo desta série que, não obstante, tem tido um grande sucesso de vendas, não conseguiu superar, quase nunca, a mediania. Bem sei, ninguém precisa de mo relembrar, que esta coleção será mais direcionada a um outro público, que não os habituais leitores de banda desenhada, mas, mesmo tendo isso em conta, a qualidade média bem que poderia ser melhor.
Diria que os álbuns Alice no País das Maravilhas (de David Chauvel e Xavier Collette) e O Livro da Selva, de Djian e TieKo estiveram entre os melhores álbuns da série. E a eles poderemos juntar os álbuns de origem portuguesa, Amor de Perdição (de João Miguel Lameiras e Miguel Jorge) e mesmo o mal-amado Os Maias (de José Hartvig de Freitas e Canizales) que, não sendo perfeitos, estiveram entre os melhores da coleção.
Agora, com este Auto da Barca do Inferno, a coleção atingiu finalmente – ao seu 30º lançamento – a qualidade que gostaríamos de ter encontrado em todos os lançamentos.
João Miguel Lameiras volta a ser chamado para adaptar o texto original de um autor clássico da literatura nacional. Desta vez, coube-lhe transpor o texto da peça Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. Uma obra que todos demos na escola, acredito.
E começa por ser na própria escolha da obra que esta empreitada funciona bem. É que, ao contrário da grande maioria dos clássicos da literatura incluídos nesta coleção, que são bastante extensos e que, em consequência disso mesmo, acabam por ser adaptados para banda desenhada de uma forma demasiadamente superficial, este Auto da Barca do Inferno é um texto relativamente pequeno e que se assumia como mais plausível para uma ingressão em banda desenhada.
É claro que havia alguns desafios e dificuldades por se tratar de um texto de teatro, onde só há diálogos, sem que sobre espaço para qualquer tipo de narração; além de ter uma linguagem arcaica, de uma outra época, que já tem poucos ou nenhuns paralelismos com a linguagem contemporânea que utilizamos para comunicar.
Vamos por partes.
Em termos da adaptação dos diálogos e da própria divisão do texto, João Miguel Lameiras – também ajudado pelo trabalho de Joana Afonso, mas já lá irei – faz aqui um belo trabalho. A sensação com que ficamos é que estamos a ler o texto integral original, mas que este nos é dado de forma bem dividida, com um bom ritmo e que convida a uma leitura leve. Vou até mais longe e direi que, a partir do momento em que este livro existe, esta é a melhor forma de ler Auto da Barca do Inferno.
A outra dificuldade de ajustar – ou não – o texto clássico e arcaico original de Gil Vicente acaba por ser superada por João Miguel Lameiras. Talvez não com distinção, mas superada. Há que ser justo: o texto de Gil Vicente é demasiado pesaroso para ler. Utiliza vocábulos que foram perdendo a usabilidade com o passar dos séculos – afinal de contas passaram mais de 500 anos, desde que a obra foi escrita! – e, portanto, nos dias que correm, não é de todo fácil ler-se os textos de Gil Vicente. Aliás, se bem me lembro, parte ou a totalidade do tempo que, na disciplina de português, passávamos de volta deste Auto da Barca do Inferno era, especificadamente, no exercício de tentar decifrar cada uma das falas. Portanto, talvez tivesse sido pertinente que João Miguel Lameiras tivesse adaptado o texto à linguagem do nosso tempo. Todavia, isso também acarretaria outra grande dificuldade, que seria o potencial de se desvirtuar o texto original. Se isso acontecesse, mais valeria estar sossegado, pois estaríamos a descurar parte relevante da nossa literatura, que é a própria escrita de Gil Vicente.
Sim, eu sei, preso por ter cão e preso por não ter.
Ora, portanto, se eu gostaria de ter visto uma adaptação do texto original para a linguagem dos nossos dias, também estou ciente que essa abordagem poderia ter corrido mal e isso seria infinitivamente pior do que apresentar o texto original, com o recurso a várias notas de rodapé para explicar alguns vocábulos, como acabou por ser a opção tomada por Lameiras. Fazendo uma comparação para o universo futebolístico, é verdade que João Miguel Lameiras tinha aqui a oportunidade de fazer um golaço de pontapé de bicicleta, se tivesse adaptado (com sucesso) o texto da obra, mas, pelo menos, não fazendo um “golaço”, também não rematou ao lado. Acabou por marcar golo.
E por falar em “golaços” e em sucesso, Joana Afonso, de quem sou confesso fã: 1) volta a dar-nos um trabalho de primeira linha; 2) volta a superar-se a si mesma e 3) volta a surpreender-nos. Bem, para ser sincero, começo a já não me surpreender com a possibilidade de me vir a surpreender com o trabalho de Joana Afonso pois a verdade é que a autora nos tem vindo a habituar a isso. O que deixa a expetativa alta, claro, mas Joana tem sabido responder bem a isso, de livro para livro.
Tal como referi atrás, um dos desafios de adaptar esta obra era o facto de se tratar de uma peça de teatro e, por esse motivo, prender um pouco a questão cénica e das personagens a um só lugar. É meio caminho andado para, no cinema ou em banda desenhada, se tornar enfadonho. Mas “enfadonho” é tudo o que este livro não é. O que revela que Joana Afonso – por ventura ajudada pelo diálogo e preparação com João Miguel Lameiras – nos oferece um belíssimo livro que parece ultrapassar, sem problemas, esta suposta dificuldade.
Já agora - embora espere que todos o saibam - a história baseia-se muito nos diálogos que algumas personagens, que são claros arquétipos da sociedade, têm com o anjo e com o diabo depois de terem morrido. Naturalmente, todas pretendem ingressar no paraíso, mas, sem surpresas, todas elas acabam por ser remetidas para a barca que ruma aos mares do inferno, com base nas ações que praticaram na sua vida terrena. Há uma clara crítica social e até um certo paternalismo católico no texto de Gil Vicente – se bem que, numa segunda leitura, seja possível encontrar um certo cinismo e uma certa crítica à própria igreja, o que acaba por tornar todo o texto muito mais saboroso, diria.
Partindo, então, desta premissa de “personagem que acaba de morrer e que se vê confrontada com a triagem elaborada pelo Anjo e pelo Demónio”, Joana Afonso tem o enorme mérito de não se repetir a si mesma, apresentando um belo conjunto de soluções visuais diferentes, que bem se apoiam numa planificação dinâmica, em planos de câmara audazes e, claro, na sua inconfundível e ternurenta forma de desenhar figuras tão belas e tão empáticas. Nota ainda para a presença de algumas ilustrações de grande dimensão, algumas delas que ocupam duas páginas, onde a autora demonstra porque é que é um dos grandes talentos nacionais na ilustração de banda desenhada.
Com efeito, a forma como ambos os autores conseguiram, numa só grande ilustração, colocar vários diálogos – algo que João Miguel Lameiras já havia feito com Miguel Jorge na adaptação de Amor de Perdição - revela-se muito inteligente.
As cores de Joana Afonso também voltam a ser muito belas – embora me pareçam demasiado escuras na capa do livro, o que pode estar relacionado com a própria impressão – e isso confere uma dose (ainda) maior à expressividade das personagens.
Resta-me ainda dizer que adorei a forma como os autores terminam o livro. Se já estava satisfeito com a leitura, o final do livro levou-me a dizer para mim mesmo: “Bravo!”.
Quanto à edição da Levoir, o livro mantém as características dos outros álbuns da coleção, ou seja: capa dura, bom papel brilhante, boa encadernação e boa impressão. No final, há um dossier, preparado em colaboração com o professor José Bernardes, que inclui 9 páginas de extras onde podemos aprofundar os conhecimentos sobre Gil Vicente, a sua obra e o seu contexto histórico-social.
Em jeito de conclusão, posso dizer-vos que este Auto da Barca do Inferno consegue a dupla proeza de adaptar com bastante rigor a obra original de Gil Vicente, enquanto que as suas belíssimas ilustrações dão personalidade e interpretação própria a um universo de personagens que continuam bastante atuais. É, de longe, o melhor livro da coleção dos Clássicos da Literatura em BD da Levoir e da RTP e, como tal, merece ser lido por todos!
NOTA FINAL (1/10):
8.9
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Auto da Barca do Inferno
Autores: João Miguel Lameiras e Joana Afonso
Baseado na obra clássica de: Gil Vicente
Editora: Levoir
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Maio de 2023
👏👏👏👏👏👏☺️☺️☺️☺️☺️
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