Porra.. Voltei! é o álbum mais recente de Álvaro [Santos] e assume-se facilmente como a obra de maior fulgor do autor português. Em mais de 300 páginas, Álvaro leva-nos a navegar numa densa e mirabolante história onde a religião, os meios de comunicação e a própria superficialidade com que vivemos são os maiores visados. É uma obra profunda, complexa, cheia de segundas leituras, que deve ser lida por todos!
Depois de feita a leitura, parece-me notório que o autor muda um pouco em termos de discurso e seriedade, face ao tipo de álbuns a que nos tem habituado. E dizer isto, não é afirmar que esta é uma obra que seja o oposto das anteriores. O estilo de humor mordaz mantém-se presente, sim. Todavia, se, até aqui, o humor de Álvaro tem sido a tónica principal dos seus livros, havendo, ainda assim, algum espaço para crítica social, em Porra… Voltei! a fórmula parece ser bem diferente: temos um livro que, de maneira desbragada, tece violentas críticas à Igreja e aos que agem em seu nome, à sociedade atual, aos media e, de forma global, ao “aparvalhamento” das gentes da nossa era. De nós próprios. E, lá no meio, também há humor, claro. Mas, desta vez, o enfoque não é humor. É certo que me ri várias vezes com este livro, mas a verdade é que não classificaria Porra… Voltei! como um livro de humor.
Antes pelo contrário, a sensação com que ficamos, quando acabamos a leitura deste extenso livro, é de um certo alarme, de um certo desencantamento, de uma certa devastação emocional. Porra… Voltei! é um álbum pesado e que, de maneira viciante, passa para o leitor toda a desilusão perante o caminho que temos percorrido. Enquanto sociedade, enquanto mundo.
Para tal, apoia-se numa premissa interessante: o que aconteceria se, passados mais de 2.000 anos, Jesus Cristo voltasse à Terra? Que acharia ele do estado atual do mundo? Terão os alicerces de uma sociedade que ser apoiados no culto de uma figura? Terá a igreja desvirtuado os pressupostos iniciáticos da própria religião? As questões são sérias e carecem de resposta simples. Por isso, Porra… Voltei!, mais do que tudo, convida a uma reflexão profunda.
O início deste livro – e quando digo “início”, refiro-me à primeira metade do livro - é tão enigmático e arrebatador que tenho que dizer que, infelizmente, algures a partir da segunda metade do livro, me pareceu que a trama se perdeu um pouco. E explico porquê: o início da obra tem um ritmo narrativo que é magnífico. Quase como um filme de suspense ou de mistério, vão sendo dados ao leitor vários eventos que, à partida, parecem não estar relacionados entre si, mas que, à medida que a nossa leitura vai avançando, percebemos que não são mais do que acontecimentos interligados que surgem em catadupa, juntando várias personagens em determinados momentos que convergem com a chegada de Jesus Cristo à Terra, qual extraterrestre. Achei verdadeiramente genial, esta maneira de nos dosear a história e de nos manter colados a ela.
Confesso até que fiquei surpreendido pelas fortes apetências narrativas de Álvaro que consegue juntar a situação precária dos refugiados, a seita que opera com este tráfico humano, a dupla de polícias (que é hilariante) e o próprio Jesus Cristo que, careca e nu, parece estar longe daquela forma física bela e exemplar que a Igreja Católica normalmente veicula.
Todo o arranque da história, extremamente cinematográfico, é criado de forma sublime, repito. A restante história vai, depois, progredindo para situações que levam Jesus Cristo a ter que se defender, à paulada, de inimigos que aparecem no seu caminho, a ter que lidar com uma mulher que, embora lhe sirva de amparo, é movida por uma forte volúpia, que acaba por arrastar Jesus para uma vida de casal mundana.
Jesus vai, depois, tomando conhecimento de como é o mundo através da televisão e, meus caros, tenho que dizer que considero genial a forma e os exemplos escolhidos por Álvaro para apresentar o mundo atual: desde o forte apelo ao consumo desenfreado em que vivemos na atualidade, passando por um culto do rápido e superficial, a doença pelo desporto (especialmente pelo futebol), os programas de televisão de qualidade dúbia, a violência e exploração do corpo, o discurso político de ódio, a fome no mundo, o excesso de abundância para alguns, a Igreja que quer dizer ao mundo o que se deve e o que não se deve fazer, o racismo… enfim, está cá tudo. E claro, quando exposto a estas imagens, Jesus fica surpreso e chocado perante aquilo em que o homem tornou o mundo.
O livro estava verdadeiramente genial até aqui. Mas, infelizmente, e como já referi, parece-me que Álvaro acaba por perder o controlo do seu próprio enredo, já que se começa a encontrar alguma redundância no tema, que acaba por não permitir ao livro ir mais longe. Eventualmente, Jesus vê-se na necessidade de confrontar a igreja, sem que mereça crédito por parte da mesma. E, às tantas, fica claro que, mesmo que a igreja tivesse a melhor das intenções no conjunto de valores que apregoa, há muito se afastou dos mesmos.
Há várias cenas de tortura que poderão ferir algumas suscetibilidades, mas que servem, sem dúvidas, para mais incisivamente assinalar o modo de funcionamento de muitas seitas de cariz religioso.
O livro está ainda salpicado de citações de personalidades relevantes da nossa sociedade, como Einstein, Carl Sagan, Charlie Chaplin ou Donald Trump, entre outros, que parecem surgir como pistas que Álvaro nos vai oferecendo para melhor compreendermos o alcance da história.
Mas se na história o autor português vai mais além do que o expetável, em termos visuais este também é o trabalho em que o autor mais “nada para fora de pé”. E fá-lo com muito sucesso! O seu habitual grosso traço a preto e branco, de cariz cartoonizado, também aparece em Porra... Voltei! mas não se fica por aí porque, quer em termos de planificação, quer em termos de soluções narrativas ou de planos de câmara utilizados, Álvaro arrisca muito mais e dá-nos um belo trabalho, que apresenta uma boa dose de diversidade, o que torna a leitura mais apetecível num livro com tantas páginas. Há alguns desenhos que aparentam ter sido elaborados de forma mais rápida, mas também há outros onde é clara a forte inspiração e detalhe na execução do autor, que muito me agradaram e que gostaria de ver Álvaro a explorar mais em livros vindouros.
A edição é em capa mole e com papel brilhante. Sendo esta uma edição de autor, já que a chancela Insónia Edições pertence ao próprio Álvaro Santos, o livro tem uma boa apresentação. Como não há margem entre as vinhetas e os limites da página, é verdade que na parte interior do livro encontramos, por vezes, algum balão de fala que não se lê tão bem. Mas não é nada de muito alarmante, dira.
Em termos de capa, devo dizer que, quanto a mim, o autor poderia ter sido mais feliz. Não é que a capa tenha uma ilustração mal feita ou algo que se pareça. Mas a verdade é que, mesmo no interior do livro, há muitas mais ilustrações que poderiam ter dado origem a uma capa mais impactante e chamativa. Além de que a escolha de cores torna pouco visível a figura de Jesus na capa.
Em suma, este Porra… Voltei! promete não deixar ninguém indiferente. Se o início do livro é verdadeiramente impressionante, o último terço do mesmo parece mais forçado e mostra-nos um autor que não soube fechar tão bem a obra como a soube abrir. Não obstante, será injusto da minha parte se não classificar este como o melhor livro do autor e uma das mais pertinentes e obrigatórias bandas desenhadas nacionais do ano. Sou fã do registo mais leve e ligeiro do autor, mas é neste registo mais intenso – e com uma arte que arrisca mais – que eu quero ler mais livros de Álvaro!
NOTA FINAL (1/10):
8.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Porra... Voltei!
Autor: Álvaro
Editora: Insónias Edições (Edição de Autor)
Páginas: 320, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Maio de 2023
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